Apatia, populismo e conquistas de Abril em conversa nos 50 anos de Liberdade

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Maria de Belém Roseira, António Lobo Xavier e o jornalista Rui Baptista foram os convidados para a sessão extraordinária da Assembleia Municipal do 25 de Abril, na qual se falou da Revolução, do 25 de Novembro, da extrema-direita e do que faz falta para agitar a malta.

As vozes ternurentas do Coro Infantil da ARMAB – Associação Recreativa e Musical Amigos da Branca abriram a sessão extraordinária da Assembleia Municipal (AM), evocativa do 25 de Abril, no Cineteatro Alba. Mário Branco, presidente da AM, começou por pedir um minuto de silêncio por “todas as populações civis, em qualquer parte do mundo” que enfrentam a morte e destruição diárias trazidas pela guerra.

O estudo “Os Portugueses e o 25 de Abril” foi ponto de partida para as primeiras palavras oficiais de Mário Branco. A sondagem do ISCTE, feita em parceria com a Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril, demonstra que a data é o facto mais importante da História de Portugal para 65% dos inquiridos.

O mesmo estudo indica que, apesar de mais de metade defenderem que a Revolução teve consequências mais positivas do que negativas, se observa “um aumento gradual” da proporção de inquiridos que considera que foram tão positivas como negativas. “As pessoas gostam da data. O povo não tem dúvidas quanto à Liberdade, mas sim em relação à forma como esta tem sido governada”, interpreta o presidente da AM, apelando a “uma reflexão por quem de direito e por parte dos genuínos defensores da democracia”.

Mário Branco deixa conselhos aos eleitos e eleitores para a preservação dos valores de Abril – a quem governa pede consensos partidários em grandes temas, “que pare de se adiar o inadiável” como grandes obras nacionais e às oposições que sejam “construtivas e incisivas”; à sociedade apela a que se torne mais “interventiva e não voyeurista” que vote e se envolva no associativismo e voluntariado locais.

“O povo unido jamais será vencido se estiver unido por ideias valores e causas – e se estiver atento, caso contrário, será presa fácil para os pretendentes a ditadores que cheiram logo essa falta”, alertou. Mário Branco reforçou a importância de lembrar quem lutou pela Liberdade, o dever de não defraudar Abril e a necessidade de impedir os que querem tirá-lo às gerações futuras. “Vamos celebrar e espalhar Abril, sempre e por toda a parte”, terminou.

Fim da guerra e Abril sem donos

Firmino Ruas Mendes, representante do Partido Socialista (PS) na AM, apelou à necessidade de “regar os cravos plantados nas espingardas” e louvou a Liberdade de viver Abril sem medo da censura do lápis azul e da repressão da PIDE. Aos jovens que não vão votar, algo que o “entristece profundamente”, deixou a mensagem de que “quem descansa à sombra da democracia, não a tem como garantida”.

O eleito pelo PS lembrou as conquistas de Abril nos campos da educação superior, combate ao analfabetismo, melhorias na saúde, proteção social, saneamento básico, empresas abertas ao exterior e “a possibilidade de ser aquilo que queremos” em referência às profissões barradas a alguns estratos sociais e às mulheres.

O socialista defendeu que “o Portugal de hoje é muito diferente, mas ainda tem muitas lacunas” tais como as estatísticas preocupantes relativas a vítimas de violência doméstica e, no campo político e da informação, as notícias falsas e secções de comentários em redes sociais “como formas mascaradas de ferir a democracia” que só uma “imprensa livre, isenta e credível” tem o dever e capacidade de enfrentar.

O ex-combatente lembrou “os 13 anos que assolaram o país” e felicitou o fim da guerra colonial, responsável pelo enorme “sofrimento físico e psicológico” de uma geração inteira de portugueses, evidenciando o “tempo desperdiçado” por falta de vontade, incompetência e incapacidade políticas de colocar fim a um conflito que “gera ainda tantos ressentimentos e ódio” entre povos e pessoas.

Firmino Ruas Mendes terminou pedindo “que se reflita muito bem se vale a pena” avançar com o serviço militar obrigatório e admissão de não nacionais. “Estaríamos nós dispostos a que os nossos filhos e os nossos netos fossem recrutados para uma guerra noutro país?”, questionou. Servindo-se das palavras de Eduardo Lourenço, despediu-se dizendo que, com todas as críticas, avanços e recuos, esta foi “a Revolução possível e lúcida”. “Abril não tem donos, Abril é dos portugueses”, findou.

Direitos das mulheres e “herança coletiva”

Sara Vinga da Quinta, em representação do Partido Social-Democrata (PSD), felicitou o assinalar do “marco histórico” que respondeu “aos anseios de um povo por justiça, liberdade e igualdade”. A eleita lembrou que o partido sempre defendeu “que o 25 de Abril deve ser celebrado sempre, sabendo bem de que lado da história está”.

A social-democrata realçou a data como uma “revolução política, mas também social” sobretudo no que toca ao papel das mulheres, “cuja voz se levantou em busca de reconhecimento e igualdade”. Ainda assim, alertou para a sub-representação das mulheres na Assembleia da República e nível local; fora as discriminações nem sempre ilustradas por estatísticas como o maior escrutínio, dificuldade em criar círculos informais, sobrecarga nas tarefas domésticas e necessidade constante de provar as próprias capacidades.

Servindo-se do direito de Abril de existir como oposição política, chamou à atenção para a necessidade de baixar o preço da água em Albergaria, construção de um parque verde na cidade e lembrou os encargos judiciais pagos pela autarquia à empresa que impugnou o concurso público da obra do Centro de Saúde local; defendendo, em suma a “necessidade de trabalhar para um concelho dinâmico e diferenciador”.

Da bancada do Centro Democrático Social (CDS), Pedro Rebelo dirigiu-se aos jovens que receberam esta “herança coletiva” transmitida pelas memórias de quem a viveu e teve o “direito de ousar e sonhar com uma sociedade livre e democrática” como terão as gerações futuras. O representante do CDS lembrou igualmente o 25 de Novembro como data essencial para cumprir Abril.

Apesar “da liberdade, igualdade de oportunidades e justiça” nascidas com a Revolução, não deixou de lembrar que “50 anos depois, os desafios não são novos”, referindo-se à guerra e ao populismo que “a que as pessoas acreditem em respostas simples para questões complexas”, convencendo-se de que “a causa principal dos nossos problemas são os outros, uma forma de fugir à nossa responsabilidade individual” ao invés de assumir que são “a intolerância, o medo e ignorância que nos tornam o nosso pior inimigo”.

Pedro Rebelo apelou para que a luta pelos valores de Abril seja feita “no campo da moderação e não no reacionário”, lembrando que apesar do aumento de casos de corrupção denunciados, algo que vê como sinal de transparência e progresso, e de outros desafios, a democracia continua a ser “o melhor dos regimes, o único assente na autodeterminação e o único que nos quer livres”.

Antes de finalizar com uma saudação às “celebrações até agora inéditas no nosso concelho”, o eleito pelo CDS resumiu a mensagem de Abril ao ensinamento de que “não devemos desistir dos nossos ideais e lembrar que as Revoluções podem ser feitas sem violência e sem sangue”.

Poder local, bombeiros e GNR

António Loureiro, presidente da Câmara Municipal de Albergaria, agradeceu a Mário Branco e Nuno Jesus, 2º secretário da AM e historiador do concelho com trabalhos focados na freguesia de Ribeira de Fráguas, “por tudo o que têm feito pelo desenvolvimento de Albergaria, causa a que sempre se comprometeram”.

O presidente falou do 25 de Abril como uma data que exige “por parte de cada um, uma verificação constante com os nossos valores” e afirmou que é, essencialmente, um dia “de todos e para todos”, frisando que as celebrações dos 50 Anos “foram um contributo fundamental para que a chama de Abril se mantenha viva por muito tempo em Albergaria”.

O edil agradeceu a todos os participantes nas atividades que decorreram ao longo do mês e realçou a “felicidade de ter mulheres incríveis” como vereadoras “encarregues das pastas mais difíceis”, referindo-se a Catarina Mendes e Sandra Almeida. “Não estão aqui por cotas, estão aqui por mérito”, frisou.

No final das intervenções foram feitos três reconhecimentos públicos, assinalados com a entrega dos símbolos das comemorações municipais dos 50 Anos do 25 de Abril: o livro ‘A Assembleia Municipal de Albergaria-a-Velha e os seus Membros – 50 Anos em Democracia’, um peça em porcelana evocativa da data e um cravo em crochê feito pelas mãos dos utentes do Programa Idade Maior.

O primeiro foi dirigido ao poder local, com a entrega dos símbolos a todos os presidentes da Assembleia Municipal eleitos desde as primeiras eleições em 1976 e ao único antigo presidente da Câmara Municipal presente na cerimónia, Rui Marques, ficando as restantes distinções “a realizar em data a acordar”.

Foram igualmente distinguidos os Bombeiros de Albergaria pelo trabalho que é “exemplo maior de cidadania e solidariedade, dois valores de Abril, sem nunca discriminar no momento de prestação de socorro”; e a GNR por “zelar para que todos os direitos democráticos que Abril devolveu à sociedade sejam cumpridos nos limites da lei”.

“Onde estava no 25 de Abril?”

O jornalista Rui Baptista, convidado para moderar o colóquio ’25 de Abril: Ontem, Hoje e Até Quando?’ com os convidados Maria de Belém Roseira e António Lobo Xavier, uma tarefa que se comprometeu a fazer “com arbitragem à inglesa e sem recurso ao VAR”, começou por apresentar os intervenientes que “dispensam apresentações”. Rui Baptista introduziu Mária de Belém como já candidata a Presidente da República e ministra da Saúde (1995-1998) e da Igualdade (1998-2000), “alguém cuja vida política e cívica se confundem com a história da democracia”. Lobo Xavier foi apresentado como advogado, comentador na TVI até ao momento e “a reserva moral, nacional e ativa do CDS”, bem como atual conselheiro de Estado “tarefa difícil com este Presidente da República”, atirou Rui Baptista.

A conversa abriu com o clássico “onde estava no 25 de abril?”. Maria de Belém “já estava a trabalhar” depois de terminado o curso de Direito na Universidade de Coimbra e teve plena noção da importância da data, sobretudo por ter feito o percurso académico acompanhada de “colegas extraordinárias, inteligentes e brilhantes que não seguiram para a faculdade por razões económicas, isso é a amputação de um país”, frisou.

António Lobo Xavier, antes de avançar, elogiou o concelho por ser “a primeira vez numa cerimónia do 25 de Abril em que de todos os discursos de todos os partidos não têm uma única palavra que eu rejeite; saúdo Albergaria por isso”. Da data em 1974 respondeu: “Tinha 14 anos, estava no liceu e não tinha a menor noção do que era a política. Tinha sido eleito para chefe de turma e recebi um livro chamado ‘Carta aberta às vítimas da descolonização’. Um amigo sindicalista alertou-me que estava a ser presenciado com um livro fascista”.

Nada daquilo lhe disse grande coisa, mas lembra-se bem de estar a fumar o Português Suave que roubara ao pai quando lhe disseram ‘epá, já podes fumar o que tu quiseres’ o que lhe causou estranheza porque era um ato, segundo se lembra, reservado aos do 7º ano e ele estava no 5º. Numa nota mais séria, frisou ser incompreensível que o 25 de Abril não seja unanime como marco para todo o espectro político. “O antes e depois é criticável, mas a data em sim é crucial e essencial para o país, sobre isso não deveria haver dúvidas”. Sobre a disputa relativa à pertença de efemérides a cores partidárias, Lobo Xavier falou do 25 de Novembro como desnecessário “caso tudo tivesse corrido como as pessoas que concretizaram o 25 de Abril queriam”.

Maria de Belém concordou e afirmou que sem o primeiro, o segundo não existiria. “O 25 de Abril foi feito para que o 25 de Novembro pudesse continuar a permitir que Abril fosse também a conquista de integrar o mundo desenvolvido”, materializado em avanços como os direitos essenciais para as mulheres “que eram cidadãs incompletas em comparação com os cidadãos e que existiam para obedecer” antes da Revolução de 1974. A antiga ministra lembrou que o 25 de Novembro “foi capitaneado por Mário Soares, não foi feito pela direita”.

“Há quem não goste do 25 de Abril como ele é hoje quer à direita, quer à esquerda. Há quem não goste do que está para trás porque tem saudades da ditadura e há quem não goste porque tem saudades do antes do 25 de Novembro”, sintetizou Lobo Xavier. Para além das duas datas, ambos destacam a adesão de Portugal à atual União Europeia como marco de desenvolvimento socioeconómico e parte da identidade do país.

Três D’s hoje

Rui Baptista propôs uma análise dos três D’s do Movimento das Forças Armadas – Democratizar, Descolonizar e Desenvolver – passados 50 anos. Em relação à democracia, partilham a visão de que é plena “é liberal no sentido clássico, temos eleições, separação de poderes e soberania da lei”, nas palavras de Lobo Xavier, mas “não sendo a favor do voto obrigatório, gostava muito que a sociedade civil fizesse mais para levar as pessoas às urnas”, disse Maria de Belém.  

A descolonização “foi feita e tinha de ter sido, o mal foi não ter sido feita politicamente, mas a alternativa não era opção”, afirmou a socialista. O conselheiro de Estado seguiu a mesma linha, mas demonstrou “repulsa” pela ideia de “queremos descontaminar e afastar de nós a nossa história” e discorda de qualquer tipo de recompensação financeira para as antigas colónias, como propôs em declarações a correspondentes estrangeiros o Presidente da República. “Onde paramos? Também vamos restituir os mouros?”, ironizou, apesar de defender apoio solidário e humanitário para com os territórios.

No campo do desenvolvimento são evidentes para Maria de Belém as conquistas de Abril, das quais destaca o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como “joia da coroa”, sendo a Saúde “fonte primária de todos os direitos”. “Não é uma questão ideológica, é uma questão de Direitos Humanos. O SNS conseguiu o milagre da redução enorme da mortalidade infantil que hoje nos coloca ao nível dos países nórdicos”, frisou.

O aumento da esperança média de vida foi igualmente destacado, mas com um alerta. “Hoje temos o problema dos anos vividos após os 65. Em Portugal, estima-se que se vivam oito anos com real qualidade de vida após os 65 e nos países nórdicos esse valor pode chegar aos 20 anos”, informou. A antiga ministra da Saúde defendeu que grande parte desse declínio é contornável com hábitos de vida mais saudáveis. “É por isso que pedia ao Lobo Xavier para deixar de fumar”, disse, falando a sério com humor. No campo estrutural, aponta carências de habitação e rendimentos baixos como fatores que impedem escolhas promotoras de uma melhor estilo de vida.

Elefante na sala

Na reta final, o moderador lançou a discussão sobre o crescimento da extrema-direita no Parlamento, referindo-se aos atuais 50 deputados eleitos pelo Chega. Lobo Xavier afirma não ter a certeza de que todos os votos vêm da direita, estabelecendo uma relação entre o crescimento do partido de André Ventura e a perda de votos do PS.

“Existe uma parte que está zangada, outra que está farta da conversa do PCP e outros que estavam fartos da governação do PS”, afirmou. Maria de Belém lembrou a diminuição de abstenção e sugere que parte dos votos tenham vindo daí, mas concordou que alguns dos votos vêm da esquerda, remetendo para os resultados do Chega no Alentejo, onde historicamente liderava o PCP.

Rui Baptista despede-se com um elogio ao Município. “Hoje uma Câmara Municipal do CDS deu aqui um exemplo de democracia a valer”, disse, e terminou com um excerto do poema ‘Explicação do País de Abril’ de Manuel Alegre, natural da vizinha Águeda, como lembrou.

No espaço para questões ao painel, o Jornal de Albergaria pediu a visão dos três convidados sobre a cobertura jornalística e mediática relativa a partidos e movimentos de extrema-direita e a dualidade entre a cobertura necessária para que não cresçam sem contraditório e, por outro lado, o risco dos meios de comunicação funcionarem como plataforma para passar a mensagem. Maria de Belém afirmou que “o Chega existe e tem de ser considerado pelo jornalista” e que este deve estar atento à “grande máquina do partido feita para chamar à atenção”, cabendo aos profissionais na área separar a informação adequada do ruído.

Em relação à cobertura televisiva, criticou o excesso de notícias nos canais de 24h, a enorme quantidade de diretos que não acrescentam informação à peça e comentários sobre comentários que raramente vão à fonte inicial. “Isto acaba por reconstruir aquilo que já foi dito. É criada uma outra realidade”, disse.

Lobo Xavier afirmou que “as notícias são hoje mais entretenimento do que qualquer outra coisa” e que, por isso, “quem fala de forma madura e complexa não é ouvido, são ouvidos aqueles que em 30 segundos conseguem chamar à atenção”, o que beneficia partidos populistas. Como solução, desaconselha que o jornalista seja “combativo” com o Chega, “basta que se prenda com os factos e o escrutínio de todos os partidos”.

Rui Baptista falou da sua experiência: “Todos os dias me confronto com problemas desses. Eu chego a rever 60 textos por noite, como editor. Se me chega uma peça com uma mentira clara, ela tem de ser corrigida. Coloca-se em citação a afirmação e apresentam-se os factos sustentados por fontes e dados credíveis. Não posso ser uma correia de transmissão dessa mentira”, advogou.

O Beira-Vouga questionou o painel sobre formas de combate à abstenção no voto e outras materializações da alienação e desinteresse por parte dos mais jovens e público em geral no momento de participar na democracia. Lobo Xavier afirmou entender a frustração dos jovens. “Pela primeira vez na história, prevê-se que os filhos terão um futuro pior que os pais”, disse, e lembra que a Liberdade conquistada não tem assim tanto tempo. Rui Baptista deixou um conselho prático: “educação em casa e leiam, lê-se muito pouco em Portugal”.

Em momento último das celebrações dos 50 Anos do 25 de Abril organizadas pelo município, o público e convidados levantaram-se para cantar o Hino Nacional, tocado pela ARMAB.