Aurea: “Sempre tive música em mim, não me consigo recordar da primeira vez que cantei”

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A artista falou-nos sobre o gosto que tem por atuar em certames regionais, a relação próxima que mantém com a família, o percurso que trilhou até ao estrelato e os 20 anos de carreira como mulher numa indústria da música.

A entrevista foi realizada após o concerto de Aurea no Albergaria ConVida 2024, a 6 de julho.


Como é que se sentiu esta noite?

Foi um prazer, é sempre um gosto muito grande voltar, com um alinhamento novo, com novas músicas… As pessoas são muito queridas e recebem-nos muito bem. Nós devemos esse carinho e dedicação ao público e este concerto teve tudo isso da nossa parte. Espero que tenham gostado. Nós sentimos a energia das pessoas e ficámos muito felizes.

E da última vez, também se recorda ter sido uma boa experiência?

Certamente, certamente.

A Áurea nasceu em Santiago, cresceu em Silves, estudou Artes Cênicas em Évora e Letras em Lisboa…

Sim, estudei Artes Cênicas em Évora e depois na Faculdade de Letras em Lisboa. Primeiro, fui para a Faculdade de Letras e estudei Linguística. Fiquei alguns meses, percebi que não era de todo aquilo que queria, mudei-me para Évora e fui para Teatro e lá permaneci até o terceiro ano.

E aí, decidi mudar-me de malas e bagagens para Lisboa para poder dedicar-me a 100% à música.

É, portanto, uma mulher de muitas terras. Pergunto-lhe se gosta destes festivais da terra, fora das grandes salas de espetáculos.

Eu amo, adoro. Temos um contacto muito mais direto com as pessoas e sentes um carinho especial. Não sei se os meus colegas também o sentem. Sente-se um cuidado diferente, sabe? É maravilhoso, sentimo-nos em casa. São muito acolhedores.

Paredes de Coura foi, aliás, um dos primeiros sítios a receber o seu álbum mais recente, Moods (2023). As músicas têm funcionado bem ao vivo?

Funcionam bem e mudei muito neste último trabalho. Além de ter músicas de várias pessoas, eu estava habituada a trabalhar com um compositor, o meu amigo, o Rui Ribeiro, e decidi trabalhar com mais compositores – pessoas de quem gosto, que admiro há muito e outras que estão a começar agora, novos talentos.

Foi uma experiência super enriquecedora para mim. Também comecei a cantar em português, passados tantos anos e de tantas vezes me perguntarem quando é que o faria. Achei que estava na altura de me aventurar e sair um bocadinho de fora de pé e foi muito bom. Foi um desafio maravilhoso.

Cantou hoje a primeira música que escreveu em português, o tema Volta, que também está no disco. Foi muito diferente de se escrever?

É diferente, é desafiante. Em comparação ao inglês, a nossa língua é mais difícil, o som das nossas palavras é muito difícil, mas sabe muito bem e sentimos a cantar diretamente do coração, não sei explicar isto bem.

Costuma dizer-se que quando falamos com alguém numa língua estrangeira falamos para o cérebro e na língua materna fala-se para o coração…

E sente-se. Sente-se, totalmente.

Quando atua lá fora tem muitos conterrâneos nos concertos?

Ah, sim! Há portugueses em todo o mundo e é muito bom encontrar um bocadinho de nós, uma parte de casa fora do país. É de encher o coração, mesmo.

E vão falar consigo também no final do concerto, como aconteceu aqui?

Sim! No Brasil até tinham cartazes com o meu nome. Chegar a um público diferente e ver cartazes com o nome das músicas deixa-me mesmo emocionada. É muito especial.

Mas também chega ao público estrangeiro com as músicas em inglês? Por exemplo, já atuou na China e nos Estados Unidos.

Sim, sim. Na China, por exemplo, é óbvio que é mais fácil perceberem o significado daquilo que nós estamos a dizer em inglês. E é especial porque as pessoas reagem mesmo sem conhecerem tanto o trabalho. Foi espetacular poder ir a esses países fazer a minha música.

A biografia que tem no website diz-nos que essa música sempre esteve dentro de si, quando ouvia a guitarra do pai enquanto estava ainda na barriga da mãe.

É o que a minha mãe diz! Sempre tive música em mim. Eu não me consigo recordar da primeira vez que cantei. Lembro-me vagamente de me pedirem para cantar quando era muito pequenina e de começar a cantar músicas em inglês – Barbra Streisand, por exemplo.

As pessoas achavam graça porque era mesmo muito pequenina e cantar algo assim era bem diferente, era fora. E lembro-me de crescer com música, na verdade. Vi o meu pai agarrado a uma guitarra desde que nasci.

Ouvia-se muita música, ouviam-se muitos discos. Eles sempre gostaram de música lá em casa. A mãe também cantava. A minha família é maioritariamente alentejana e havia muita gente que pertencia a grupos corais, a grupos de cantares alentejanos. Então cantava-se muito em casa, em grupo e sempre se deu muito valor à música.

Portanto, respirei música desde muito cedo. Costumo dizer que andei ali perdida durante uma série de anos e, de repente, redescobri a música e a minha vida começou a fazer outro sentido. Posso dizer com confiança que encontrei aquilo que amo fazer e fui uma sortuda por poder concretizar o meu sonho.

Além do cante alentejano, o que se ouvia e cantava em sua casa?

Muita coisa. Desde Elvis, Aretha Franklin, Pink Floyd, Amália… tanta coisa. O Fado não faltava. O meu pai tocava com fadistas e reproduzia as músicas em casa. Percorríamos vários estilos musicais, sempre gostei de ouvir muita coisa diferente.

Lembrou-me de outra coisa que li sobre si. Teve uma professora que lhe disse que devia cantar Ópera…

A minha professora Paula Dória, sim!

Mas preferiu o ritmo do jazz e blues

E do soul, especialmente. Esse episódio foi numa aula de voz e canto em que estávamos a fazer exercícios direcionados para o trabalho de representação. A professora viu que eu conseguia fazer algumas coisas e sugeriu que fosse para o lírico… Foi aí que vimos o que se podia fazer para eu mudar de curso e começar a estudar música.

Não fui pelo lírico, eu já sabia que não seria esse o meu caminho, mas acho que foi o primeiro momento em que alguém reparou em mim e pensou que cantar fosse algo que eu conseguisse fazer profissionalmente. Isso foi muito importante.  Depois, o meu amigo Rui começou por me ouvir a cantar numa brincadeira, a coisa escalou e gravei o meu primeiro disco em 2008. Foi quando desisti do curso e me mudei para Lisboa.

Há pouco falávamos da sua família e há muitas entrevistas em que menciona a proximidade que tem com eles. Hoje, quando cria algo ainda lhes mostra primeiro?

Obviamente. O meu irmão é a primeira pessoa a ouvir tudo o que faço. Envio sempre tudo para saber o que acha. Ele também tem esta grande paixão pela música e aprendeu a tocar guitarra. Tocámos e cantámos juntos durante o crescimento. Na adolescência era um hobby que tínhamos e fazíamo-lo em todo lado. Portanto, confio muito no meu irmão e no seu bom gosto. Tudo o que faço passa também por ele.

Em algumas entrevistas fala igualmente, para o bem e para o mal, de uma necessidade que tem de agradar aos outros. Como é que lidou com isso quando foi jurada de programas de talentos?

Não é fácil, especialmente com crianças. Se bem que, eu pensei que seria muito complicado passar de vários anos de The Voice com adultos para o The Voice Kids. “Como é que se vai dizer que não? Como é que não vamos virar a cadeira? Como é que vamos reagir a vê-los chorar em cima do palco?”, pensava muito nisto.

Mas, percebi uma coisa: as crianças aceitam tudo muito melhor e têm uma capacidade fora do normal – muito mais que os adultos – de aceitar o que lhes estamos a dizer. Isto torna o trabalho muito mais fácil e especial. Aprendi muito com eles. São crianças que estão ali a começar e que têm uma coragem, capacidade de trabalhar e profissionalismo impressionantes.

As próprias crianças tendem a ser muito honestas…

Sim, dizem tudo sem filtros.  Se querem fazer ou se não querem, já sabem muito bem o que querem. É muito engraçado.

Uma última pergunta. Hoje fez um medley só de vozes femininas contemporâneas fortes. Com uma carreira de quase 20 anos numa indústria ainda dominada por homens, que balanço faz destas décadas?

É um mundo ainda maioritariamente de homens. Só vamos conseguir fazer um trabalho muito forte e superior àquilo que os homens fazem quando, como mulheres, estivermos juntas e sem invejas, sem nos tentarmos ultrapassar e pisar; sendo amigas, sinceras e honestas umas com as outras. Nesse dia, as coisas vão mudar a sério.

Apesar de tudo, tenho sido uma sortuda. Tenho 36 anos e posso continuar a fazer o meu trabalho e a ter público, continuar a ter carinho das pessoas. Isso supera tudo para mim.