A cantora cabo-verdiana conversou com o JA, no final do concerto que deu no Albergaria ConVida, sobre o novo álbum ‘Gente’, o poder da música na união entre gentes e culturas e o reconhecimento que começa a ganhar em Portugal; há tanto conquistado lá fora.
A entrevista foi realizada após o concerto de Nancy Vieira no Albergaria ConVida 2024, a 4 de julho, inserido igualmente na programação do Festim – Festival Intermunicipal de Músicas do Mundo.
Começando por Albergaria, mas igualmente por esta sua missão assumida de divulgar a música cabo-verdiana. Os dois elementos juntam-se, como disse em palco, na sua primeira vinda ao concelho, na qual acompanhou Mário Lúcio. Conte-nos um pouco sobre isso.
Foi em 2022, a minha primeira vez em Albergaria e foi na melhor companhia possível. Fizemos concertos no Festim, a cantar algumas canções do Mário e foi muito bom voltar aqui. O concerto foi em ambiente de auditório [Cineteatro Alba], mas o público foi muito caloroso, tal como hoje, neste Albergaria ConVida.
No meio desta azafama dá tempo para sentir as gentes do concelho?
Dá para sentir as gentes que vêm ao concerto, porque nós estamos em viagem, paramos poucas horas nos sítios – é o tempo de fazer o ensaio de som e tocar. Amanhã já vamos estar no aeroporto de Lisboa para apanhar um voo para Amsterdão, onde temos um concerto no Afrika Festival Hertme, um festival muito interessante de músicas do mundo.
Portanto, respondendo à pergunta, não. Não há muito tempo para sentir as gentes, mas no pouco tempo que cá passámos fomos muito bem acolhidos, com muita hospitalidade. Gostei bastante da reação do público, repito, muito caloroso e a cantar connosco… Sentimo-nos bem acarinhados.
E por falar em gentes, falemos do seu novo álbum ‘Gente’. Foi apresentado em março, no São Luís…
No Teatro São Luís, sim. Um concerto esgotado. Estiveram presentes quase todos os convidados que participaram no disco, tive essa sorte. O Mário Lúcio foi um deles. Neste disco há algumas canções da sua autoria. Ele é dos meus autores e compositores de eleição e está sempre nos meus discos.
Tive igualmente ao meu lado a Amélia Muge, Paulo Flores, Remna, Acácia Maior e os Fogo Fogo, que participaram comigo neste Funaná de que o público tanto gostou.
É um álbum de gentes por ter muita gente a fazê-lo, mas também por contar histórias de pessoas…
Exatamente, por ter muita gente, gente querida, que eu admiro, muito talentosa, que me ajuda desde os primórdios do meu percurso ou mais recentemente a fazer a música que eu gosto. E também por contar histórias das minhas gentes, das minhas ilhas.
Foi também um disco de estreias para si. Por exemplo, foi a primeira vez que gravou em crioulo guineense.
Sim, do país onde nasci, mas eu não sei falar crioulo da Guiné. Aprendi a letra da música, compreendo e gosto muito. É um crioulo muito bonito e musical, gosto muito da música tradicional guineense. Gravei este tema em jeito de agradecimento por todo o carinho que recebo do povo guineense. Eles dizem ‘também és nossa’ por eu ter nascido lá.
Cantei o fado crioulo em português. Foi a primeira vez gravei um fado, mas é um fado diferente, não é um fado tradicional. Eu tenho muito respeito pelo fado e algumas pessoas hoje falaram desse tema aqui, na mesa onde estavam a vender os discos, e reagiram bem ao fado crioulo, o que me deixou muito feliz.
Foi também a primeira vez que pôs a mão na produção. Como foi?
É, até agora tenho tido produtores. Desta vez, aventurei-me. Tive duas grandes bengalas, a Amélia Muge e o António José Martins [ex-Trovante]. Mas, aventurei-me e fiz muita coisa. Foi bom, não foi difícil. Sabe porquê? Porque tenho grandes músicos comigo. Eu escolho com muito cuidado o repertório e são estes músicos que dão vida às músicas. Tudo o que eles tocam soa bonito, fica bonito.
Portanto, como produtora, posso dizer, não menosprezando o meu trabalho, que não fiz grande coisa [risos]. São eles que tocam, são eles que dão vida às canções.
É um álbum que, apesar de ter poucos meses, as pessoas conhecem bem.
As pessoas já conhecem, foi muito divulgado. Ter concertos em Portugal deixa-me muito feliz porque eu vivo aqui há muitos anos e continuo a ter mais concertos lá fora. Mas essa regra está a ser contrariada este ano, depois da apresentação deste disco.
Tenho mais algumas datas em Portugal, até ao fim do ano vou fazer dois grandes concertos – um em Lisboa, no dia 15 de novembro, no B.Leza, e estarei pela primeira vez no Porto, em nome próprio, na Casa da Música, a 2 de novembro. Estiveram hoje aqui pessoas que vieram do Porto ter comigo, o que me deixa muito feliz. Esta receção do público português a este álbum deixa-me muito reconfortada.
Acaba por ter concertos em Portugal e alguns fora dos grandes centros urbanos, o que também faz diferença.
Faz muita diferença. Nem tudo tem de acontecer em Lisboa e Porto, especialmente quando há festivais como o Festim em terras mais pequenas, que nos dão a oportunidade de trazer as nossas músicas a pessoas que, se calhar, não a conhecem ou não conheceriam de outra forma.
Amélia Muge e o António José Martins são duas referências da música portuguesa que guarda consigo. Mas também já cantou Zeca Afonso para o álbum Reintervenção. Escolheu a música Tu Gitana. Porquê?
Eu gostava de muitas que achava que eram muito cantadas. Nunca é demais cantar as músicas mais conhecidas do Zeca, mas gostei desta como novidade, era menos ouvida…
E é cantada por uma mulher…
Ela é menos ouvida, cantada por uma mulher, exatamente. Então, gravei. Mas sobre a música portuguesa tenho muitas referências. Uma das minhas primeiras participações com músicos portugueses foi com Rui Veloso, gravámos a Canção de Alterne. Gravei também com a Ala dos Namorados e com o Júlio Pereira. Cantei e fiz espetáculos com o João Gil.
Sinto-me mesmo muito honrada com essas participações. Desde miúda, quando vim para aqui e comecei a cantar, tive logo esses monstros da música portuguesa a quererem convidar-me, a ter-me por perto. Isso é reconfortante.
O cantar Zeca levou-me a outro projeto que fez, por ser mais reivindicativo, que foi o disco “Música de intervenção cabo-verdiana: a história da luta de independência de Cabo Verde contada em música” [1999]. As músicas que escolheu cantar têm um grande sentimento antiguerra. Podiam ter sido feitas hoje?
Infelizmente, sim. Não temos uma, não temos duas, temos várias guerras. Podemos achar que por serem guerras geograficamente distantes não nos afetam, mas o mundo está globalizado e os efeitos nas pessoas chegam também até nós. Não queremos viver num mundo em guerra. Não podemos estar bem se sabemos que outras pessoas, perto ou longe, estão a sofrer, a morrer e a perder as suas famílias.
Nesse sentido, considera que a sua música também é interventiva?
É uma música que apela ao bom convívio entre as pessoas e entre os povos. Também tem o seu ‘quê’ de interventivo. Apela à harmonia.
Terminando por onde começámos, pela missão de Nancy Vieira de espalhar a música cabo-verdiana, como é que se sente quando a comparam a Cesária Évora?
É algo que acresce muito a minha responsabilidade. É das minhas maiores referências, mas ninguém se compara à Cesária Évora. O legado que ela deixou é coletivo – é meu e de todos os artistas cabo-verdianos que ainda estão na estrada a espalhar a música de Cabo-Verde, com muito orgulho.