Criadora do ‘Espécie Rara Sobre Rodas’ fala de deficiência sem tabus

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Catarina Oliveira convidou a sociedade a olhar para dentro e reconhecer que os entraves não estão na deficiência. No caminho para a inclusão real, a ativista pede mais narrativas na primeira pessoa e menos estereótipos; mais escuta ativa da experiência vivida e o fim da infantilização e pena no trato.

“É com um orgulho muito especial que celebramos 35 anos de trabalho aqui em Albergaria”, agradeceu Sofia Ferreira, diretora-executiva da ASSOL – Associação de Solidariedade Social de Lafões, a operar no concelho de Albergaria desde 2019. O aniversário da IPSS celebrou-se, na tarde de quarta-feira, no Cineteatro Alba, como parte da Semana da Educação, organizada pelo Município de Albergaria-a-Velha.

Os utentes estiveram no centro da celebração, tendo o ponto alto da festa sido a exposição de Catarina Oliveira, ativista contra o capacitismo – discriminação para com pessoas portadoras de deficiência – e criadora do projeto ‘Espécie Rara Sobre Rodas’, que soma 52 mil seguidores no Instagram.

Antes da apresentação, a diretora-executiva da ASSOL frisou a importância do trabalho em rede para a real inclusão das pessoas com deficiência ou necessidades especiais, nomeadamente entre centros de emprego e formação, empresas “pela coragem de dar o primeiro passo”, autarquias e Juntas de Freguesia “que conhecem o território e nos fazem chegar situações sobre as quais mais ninguém sabe”.

“Em 35 anos, ajudámos muitas pessoas a integrarem-se no mercado de trabalho, a sentirem-se melhor nas suas escolas, vimos utentes casar e ter filhos. Vimos todos crescer de acordo com a sua capacidade, mas sobretudo de acordo com as oportunidades proporcionadas e caminhos abertas pelas suas comunidade”, findou Sofia Ferreira, com o desejo de que a ASSOL assim prossiga.

Estereótipos entranhados

Aos 27 anos, Carolina Oliveira perdeu a sensibilidade e mobilidade nos membros inferiores. Hoje, com a mesma idade da Associação aniversariante, continua certa de que as limitações não vêm da cadeira de rodas na qual se movimenta e deixa um alerta para a frequência com que os equipamentos de apoio são retratados em filmes, séries ou meios de comunicação como prisões ou sinal de impotência.  

“Apesar de já estarmos sensibilizados para o tema no mundo teórico e dos decretos, as pessoas continuam a tratar-nos como aves raras. As maiores barreiras que enfrentamos estão cá fora e não na cadeira”, começa a ativista.

Para ilustrar a situação, partilhou algumas situações caricatas com que se depara no quotidiano, como desconhecidos que agarram a cadeira e a guiam sem comunicar essa vontade ou questionar se precisa de ajuda; ou motoristas a desejar-lhe as melhoras depois de sair do carro. “A deficiência não é sinónimo de doença”, lembrou.

Carolina Oliveira explicou que muitas destas ações, embora bem-intencionadas, resultam da reprodução de estereótipos criados pela sociedade e que se alimentam a si próprios; reforçados pela falta de narrativas na primeira pessoa e a presença de pessoas com deficiência em locais de trabalho, turmas regulares de escolas e relações interpessoais.

Assim, associa-se a deficiência a palavras como dificuldade, prisão, barreira, doença e tristeza e as pessoas aparecem representadas como preguiçosas, revoltadas, infantis, incapazes, tristes ou, em contraste, inspiradoras e guerreiras. Não há espaço para simplesmente ser. “A deficiência aparece sempre primeiro que a pessoa. Não queremos não ver a deficiência, mas queremos que as características individuais de cada um prevaleçam”, pediu.

O viés implícito de quem não interage regularmente com pessoas portadoras de deficiência deixa parte significativa da sociedade refém do viés implícito para com este grupo, suscetível a projetar representações mediáticas em pessoas reais; como “os super-heróis ou guerreiros nos Jogos Paralímpicos ou o homem da novela que miraculosamente volta a andar”.  

Para melhor entender como operam estes estereótipos na formação da própria realidade, Catarina Oliveira recomenda ‘Pessoas com Deficiência em Portugal’ (2016) de Fernando Fontes, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos; onde o autor explora as raízes destas atitudes discriminatórias.

“Diversidade é um facto, inclusão é uma prática”

Para além das diferenças no trato, a palestrante apontou as barreiras bastante literais com que diariamente se depara. “A minha deficiência é sempre a mesma. Se há sítios em que consigo fazer tudo de forma autónoma e outros em que há confusão simplesmente porque preciso usar a casa de banho e o elevador está avariado, é fácil perceber onde está a raiz do problema”, afirmou.

Catarina Oliveira explica que não basta querer incluir, não chega contratar um trabalhador portador de deficiência para um escritório que não está equipado com acessibilidades indicadas. Para além disso, insiste na necessidade de consultoria por parte de quem usa estes equipamentos. “Há rampas que parecem paredes e são impossíveis de subir de forma autónoma”, exemplificou.

Se o espaço físico não estiver adaptado a todos, a sociedade acaba por cair numa situação de “pescadinha de rabo na boca” – se não existe nenhum trabalhador portador de deficiência, então não há necessidade de adaptar o espaço; mas, se o espaço não for adaptado, nunca será convidativo para o grupo excluído.

As barreiras físicas retiram acesso a outras áreas da sociedade, como a Cultura, um dos temas centrais nas redes sociais da ativista. Desde acesso a equipamentos culturais à mobilidade segura e autónoma num festival de verão, passando pela linguagem gestual, filmes com legendas LSE ou intérpretes que acompanham concertos; Catarina Oliveira dá exemplos de boas-práticas como o uso de coletes vibratórios por parte de pessoas surdas para que possam sentir a música ou a APP ‘Be My Eyes’, através da qual se ajudam pessoas cegas a tomar decisões descrevendo aquilo que veem e oferecendo indicações faladas.

Como propostas para um futuro inclusivo, a ativista propõe: mais narrativas na primeira pessoa; ouvir a experiência vivida; ser aliado através de pequenas ações como não estacionar nos lugares reservados para pessoas com deficiência; fazer uso de linguagem apropriada, evitando termos como “inválidos” ou “incapacitados”, e saber distinguir autonomia de dependência, isto é, reconhecer que a dependência de terceiros ou equipamentos não apaga a vontade própria e capacidade de tomar decisões.

União faz a força

A tarde seguiu com a mesa redonda ‘O papel da comunidade e das parcerias na inclusão’ com moderação de Catarina Mendes, vereadora da Educação, e participação de: Isabel Delgado, da área de Educação Especial do Agrupamento de Escolas de Albergaria-a-Velha (AEAAV); António Pinto, em representação do IEFP, formado em Recursos Humanos; Carlos Coelho, presidente da Junta de Freguesia da Branca; Dalila Ferreira, coordenadora da PRAVE; Dália Reis, do Intermarché de Albergaria e Paulo Albino, pessoa apoiada pela ASSOL.

A conversa partiu de uma reflexão sobre a importância da ASSOL nos organismos e vidas dos participantes, a quem foi pedido que apontassem momentos em que a Associação alterou significativamente os seus percursos. A representante do AEAAV louvou a importância da Associação “no apoio aos alunos após a conclusão do percurso escolar e entrada no mercado de trabalho”.

Carlos Coelho apontou os frutos dados pela parceria que a Junta de Freguesia da Branca tem com a ASSOL, resultantes dos contratos de trabalho inseridos em programas do IEFP que incentivam a empregabilidade de pessoas portadoras de deficiência. “Há a consciência de que todos temos a responsabilidade social de trabalhar para a inclusão. A nossa parceria é sólida e tem tudo para continuar”, afirmou.

O representante do IEFP deu nota do crescimento da adesão a este programa e consequente aumento do investimento no mesmo. Para que os números continuem a crescer, Dália Reis incentiva a que mais empresas, à semelhança do Intermarché, se cheguem à frente e sejam as próprias a entrar em contacto com a ASSOL para saber como podem construir uma equipa mais diversa.  Paulo Albino, na primeira pessoa, deu o seu testemunho. “A minha vida mudou muito. Consegui arranjar trabalho e sentir-me útil para a sociedade”, disse.

Juntos para construir

Em relação ao futuro, os oradores partilham o mesmo olhar em frente, reconhecendo como necessária a contínua parceria entre as áreas da sociedade que representam no caminho para a inclusão plena. António Pinto voltou a falar de números para lembrar a importância das cotas. “Obrigaram as empresas a mexer-se. Foram muito positivas para quem não tinha outra forma de entrar no mercado de trabalho”, assegurou.

Para terminar, Catarina Mendes deixou que pedissem desejos. “Se pudessem pedir algo às instituições para fazerem no sentido de construir este caminho para a inclusão, o que seria?”, lançou.

“Que continuem a acreditar nestas pessoas, porque vale a pena. Se não acreditarmos, estes projetos morrem. Peço que não vejam as pessoas como números, porque, realmente, não o são”, pediu Carlos Coelho. A representante do Intermarché, filha de pai com deficiência, replicou o desejo que sempre viu no pai. “Ele sempre quis ser tratado como uma pessoa normal”, disse. Isabel Delgado pediu mais apresentações como as de Catarina Oliveira e Paulo Albino apelou, de forma prática, a que a ASSOL arranjasse “mais trabalho para as pessoas que precisam”.

“É um caminho que se vai construindo. É, sobretudo, um caminho de cidadania e dignidade”, sintetizou Catarina Mendes.

Mário Pereira, da ASSOL, fechou a sessão lembrando a importância da articulação das políticas sociais com as restantes, dando como exemplo o problema do isolamento dos idosos em prédios com três andares sem elevador. “Isto não é um problema de Ação Social, é um problema de urbanismo”, explicou.

Adicionalmente, lembrou as barreiras que não existem naturalmente no espaço público, mas que são construídas, sem considerar pessoas com mobilidade reduzida. O representante da Associação referiu, em jeito de síntese, a centralidade do trabalho como fator de inclusão social. “É importante que as pessoas possam responder com a cabeça erguida à pergunta simples ‘como te chamas e o que fazes?’”, disse, lembrando que “muitas das vezes, as pessoas não precisam de ajuda, mas sim de uma oportunidade; e a ASSOL espera continuar a poder proporcioná-las”, findou.