Paulo Gonzo: “No dia em que olhar para o relógio em cima do palco, arrumo as botas”

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O artista conversou com o JA sobre os tempos que passou no jornal Expresso, a noite de Lisboa e o amor eterno que guarda pelos blues. Paulo Gonzo falou, em primeira mão, sobre o novo disco, que já está a cozinhar e conta começar a gravar em outubro.

A entrevista foi realizada antes do concerto de Paulo Gonzo, no Albergaria ConVida 2024, a 5 de julho.


O que fazia no Expresso?

Uns faits divers e escrevia para a Revista sobre artes e espetáculos. O que ficou de mais impactante foi aquele formato do Expresso que se vê hoje, um jornal grande. Fui eu e o mestre Ribeiro [Luís Ribeiro, grafista-chefe] que o fizemos.

Aquilo era uma coisa enorme e, na altura, era tudo feito à mão. Eu desenhava os títulos e subtítulos à mão em Times Itálico, Times Thin, e depois ia para a gráfica. Não eram comuns os computadores para escrever. Usámos máquinas à séria, daquelas em que os grandes escritores escreveram, os mais antigos.

O trabalho era feito numa folha de 25 linhas datilografada – chamava-se um linguado, como ainda hoje se chama, acho. Usávamos uma ‘regreta’, que era uma régua em aço, em cobre, com 25 linhas. Ainda sou analógico.

Eu entrei, na verdade, com uma leva de grandes jornalistas em Portugal, alguns já falecidos, como o meu grande amigo António Mega Ferreira. Estavam lá a Helena Vaz da Silva, Maria João Avillez, Almeida Perucho, Luís Penha e Costa…

Havia uma reunião todas as segundas-feiras e o Balsemão dispensava-me por ser um prolongamento natural do fim-de-semana [risos]. Ele também é baterista e havia ali uma grande cumplicidade. E pronto, isto é um preambulozinho…

Esteve lá muito tempo?

Uns nove anos e meio. Depois fugi, fui para a França e andava a fazer um pós-curso. Seguiram-se as Belas Artes e aí já tinha a Go Graal, mas eram tempos difíceis para os artistas, ainda hoje é complicado.

Eu lembro-me de um episódio revelador de como as pessoas funcionavam, aconteceu há muitos anos e nunca me esqueci. Nós costumávamos frequentar um bar na Rua de Sant’Ana à Lapa, o Zodíaco, onde se reuniam todos os artistas, os tipos da Avenida de Roma, bandidos, toda a gente…. E havia espetáculos de jazz e blues, e eu tocava lá, às vezes. Era uma cave.

Nessa noite, houve uma rusga. Eu estava lá em baixo e eles entraram todos e pediram identificação às pessoas. Todos mostraram. Eu tinha o cartão do Expresso, mas para me armar, como sempre fui um bocado irreverente nessas porcarias, quando me perguntaram “E tu, o que é que fazes?” respondi que era músico. E ele “e mais?”. E mais? Senti-me vexado, senti-me ostracizado. Para eles, ser músico era não ter trabalho e se não trabalhasses não eras respeitado. Isto há-de ir comigo para a cova. Mas vinguei-me, pronto [risos]. Era preciso muita insistência. E os meus pais…

Os pais apoiavam?

Sim, sim. Eles diziam ‘Ó filho, o que tu fazes está bem feito’. Mas um músico era quase um sem-abrigo. Se querias viver da música eras um galdério, um vendido… sempre foi assim. Agora as coisas tomaram outra dimensão. A música é uma indústria enorme, mas ainda falta cultura. Se perguntar como é que se chama o ministro da Cultura, ninguém sabe.

Vai-se devagar. Eu sempre fui muito curioso e, ainda por cima, fazia um tipo de música que ainda hoje não liga imediatamente com as pessoas, o blues. Mas, eu era teimoso. Eu e o João Allain éramos orgulhosos e levávamos aquilo para a frente.

Demorou anos, fizemos imensos discos, assinámos contratos. Na altura, não se vendiam muitos discos, mas nós fazíamos muitos espetáculos porque já tínhamos um material extraordinário. Tínhamos as melhores guitarras, porque alguns dos elementos da banda vinham de Angola, por onde passava o melhor material. Tínhamos Marshall, Gibson, Les Paul, Fender Stratocaster…

As coisas começaram a tornar-se mais profissionais para mim quando assinei contrato com a CBS Records. Fui o primeiro artista português a fazê-lo. Nos anos 90, a CBS passa a ser a Sony Music. É uma grande responsabilidade. Nos Estados Unidos, não tem comparação, a música é uma indústria enorme. Os artistas são mais respeitados que os presidentes. E eu cantava em inglês…

Porque é que decidiu tentar em português?

Curiosamente, o presidente da Sony nunca me obrigou a cantar em português. Eu é que decidi fazê-lo porque as pessoas perguntavam-me isso e diziam que gostavam muito que cantasse em português.

Quando gravei o single So Do I (1985) consegui vender duas patentes. Na altura, era um estrondo, mas ninguém sabia que era eu porque cantava em inglês. Só depois de ter estado um ano no primeiro lugar do Top em Londres é que começaram a perceber que era eu.

Decidi, por curiosidade, para me ouvir, cantar em português. Reconheço que esse primeiro disco ficou aquém das expectativas porque eu queria dizer muito bem as palavras. Ainda hoje faço questão disso.

É nesse álbum de 1992, o Pedras da Calçada, que está a primeira versão dos Jardins Proibidos. Claro que não vendeu. Mas música tem ali qualquer coisa, uma passagem, uma ponte… que chama as pessoas. Aquilo é um bocado mágico.

Mas na altura não teve esse impacto?

Não, não… em 1996 fui convidado, quase de véspera, para fazer a primeira parte da Tina Turner. Eu nunca tinha tocado esse tema ao vivo e estava a estrear um baterista, o Vicky, e decidimos tentar. De repente, tínhamos ali umas 30 mil pessoas de isqueiros acessos. As pessoas já tinham recuperado aquele tema, já era deles e eu não tinha percebido. O presidente da Sony assistiu ao momento e chamou-me na manhã seguinte. “Viu o que aconteceu ali ontem? Então é assim, o Paulo vai para Bruxelas e vai gravar mais um original”, disse-me ele. Esse tema foi o Dei-te Quase Tudo. Acertámos outra vez.

Além disso, sugeriu regravar o Jardins Proibidos. Aceitei, mas tinha de baixar o tom em que foi gravado porque apercebi-me que o original não tinha resultado muito bem… A ideia principal dele era fazer um dueto com uma rapariga. Disse-lhe que isso era chapa gasta. Sugeri um homem.

Já em Alcântara, na noite, havia uma banda que eram os Santos & Pecadores e o Olavo [Bilac] era meu fã, aliás, imitava a minha rouquidão. Ele veio ter comigo e despachei-o um bocado, mas à saída deu-me aquela coisa de ir falar com ele para lhe propor o dueto. Eles uma banda diferente, com carisma.

Ele disse logo ‘eh pá, quero, claro!’. Disse-lhe que gravávamos no dia seguinte, para descansar durante o dia e gravar à tarde. Ficou gravada a parte dele cá e eu, dois dias depois, arranquei para Bruxelas e fiz o Quase Tudo (1997) que ainda é o meu disco mais vendido. Apresentei o álbum em Portugal em junho.

Fizemos o videoclipe num bar em Lisboa e hoje a Jardins é uma música que até já foi gravada em japonês e noutros idiomas. As pessoas perguntam-me se é chato cantar sempre a mesma coisa. Não é. Cada atuação é diferente, tem a ver com as pessoas e a maneira como reagem. Se a Jardins não fizer parte do alinhamento, eu não saio de lá sem a cantar.

Acontece algo parecido com temas como Sei-te de Cor, Dei-te Quase Tudo, Falamos Depois, Não Dá, Leve Beijo Triste… a responsabilidade é grande porque as pessoas veem-se em nós e eu valorizo muito isso. No dia em que eu olhar para o relógio e estiver em cima de um palco, arrumo as botas porque já não é esse o meu lugar.

Às vezes as pessoas abordam-me e dizem “eu casei por sua causa, tive dois filhos por causa de si, separei-me à sua custa”… Já veio uma senhora chinesa dizer-me que aprendeu a falar português por causa de mim. Eu sei da responsabilidade social que tenho e não brinco com essas coisas.

E gosto de pessoas. A seguir aos espetáculos fico sempre, desde sempre, às vezes mais de duas horas, a receber as pessoas que vêm que vem ter comigo, e vêm com todo o tipo de problemas. Só há que respeitar. É de uma generosidade enorme, sinto-me muito feliz por causa disso. Não há nada mais generoso do que estar em cima do palco e mal começa o acorde já estão a cantar tudo. Claro que depende dos sítios, tenho de ser um bocado de camaleão, às vezes é mais complicado cantar para 10 pessoas do que para 100 mil.

As suas músicas mais intimistas, mais próximas, resultam bem nestes certames?

Sim, sim mas eu canto blues ao vivo e outras coisas também. Tenho o álbum By Request (2010) que gravei há sete anos, produzido por uma grande amiga, a Cindy Blackman, que era baterista do Prince e toca com o Lenny Kravitz; e pelo Jack Daley. Juntámos os coros da Whitney Houston; o Andy Snitzer que toca com os Rolling Stones, o James dos The Roots, o pianista da Joe Stone, a Kat Dyson do Prince, o Paul Pesco da Madonna… estão todos no meu disco.

Era um disco que eu tinha de fazer, tudo clássicos, com arranjos meus e da Cindy. Eu sou assim muito curioso e fiz aquilo ao primeiro take em Brooklyn. É o folclore deles: Ray Charles, Marvin Gaye, Otis Redding, Sam Cooke, Percy Sledge, James Brown… e está lá tudo. Os americanos não perdoam que se desrespeitem esses nomes. Eu caí-lhes no goto. A Rolling Stone Magazine fez uma nota sobre o disco e ter lá um quadradinho já é uma grande coisa.

E são temas que funcionam bem em Portugal?

Sim, toco isso fora dos grandes centros, toca tudo isso e as pessoas recebem bem. Mas faço também imensas tours em festivais internacionais de blues. Em Portugal fico muito contente porque consegui ajudar a descobrir novos artistas, como o Matias Damásio e o Anselmo Ralph. Ninguém os conhecia aqui e agarrei neles para o Duetos (2013).

Corri o mundo para esse álbum, cantei com ingleses, mexicanos, italianos, angolanos, cabo-verdianos, franceses, espanhóis… Foi uma aventura que adorei mas mais ninguém fez e eu nunca voltarei a fazer. Havia sempre o risco de alguém não conseguir aparecer para gravar. Hoje, deixa-me muito orgulhoso.

Por falar em primeiras vezes. É uma estreia para si em Albergaria?

O meu road manager estava a dizer-me que já cá tínhamos estado, mas estando aqui ou no Japão eu sinto-me em casa. Tenho essa versatilidade.

É o público que o faz sentir em casa?

O público faz sempre… Eu sei de antemão que as pessoas vieram me ver. Por vezes, num festival, não sabemos bem qual é o público – há várias bandas e uma mescla de audiências, mas isso também torna mais desafiante o processo de agarrar o público.

Eu tenho sorte porque toda a gente conhece as músicas que canto, tenho de estar muito empenhado porque, às vezes, as pessoas conhecem melhor os textos que eu. Se me enganar, vão notar [risos].

A nova música, a Não Dá (2022), já tem esse efeito?

Sim, tem corrido muito bem ao vivo. Em Lisboa, quando chamo um táxi e se apercebem que sou eu, na brincadeira, respondem: “Olhe, Sr. Paulo, eu acho que não vai dar para lhe enviar um táxi… Não dá!”. 

Agora – e é a primeira vez que o estou a dizer – vou gravar um disco, em outubro. Tive uma reunião há uns dias na Sony. Aqui fica em primeira mão. Estou muito ansioso por isso.

Com originais?

Sim, são tudo originais. Mais tarde, avanço com o conceito do álbum, mas posso dizer que terá artistas das novas gerações a escrever para mim, o que me deixa com muita curiosidade. É uma forma de perceber como me veem e como me abordam.