Pedro Nuno Santos não fechou a porta a um acordo com o BE, mas não o quer antes das eleições. Entre o debate sobre Justiça e defesa nacional, houve críticas de Mortágua ao “falhanço” da maioria absoluta na Saúde e Habitação e o secretário-geral do PS defendeu “posições mais equilibradas” no que toca ao papel do Estado na economia.
Pedro Nuno Santos, secretário-geral do Partido Socialista (PS), e Mariana Mortágua, coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), estiveram frente a frente, no debate de ontem, às 20h30, na RTP.
A proposta do BE para um acordo escrito com o PS, caso o partido de Pedro Nuno Santos não consiga maioria absoluta, foi o tema de abertura. “Ainda não me foi feito nenhum repto. Foi feito em público, mas não aqui. Se fosse para fazer algum acordo pré-eleitoral tínhamos feito uma coligação. Estamos concentrados em apresentar as nossas medidas ao país e a apelar ao voto no PS”, respondeu o secretário-geral.
Ainda assim, deixou uma fresta aberta e negou estar a distanciar-se do BE para agarrar o voto dos eleitores centristas. “Eu não fiz um apelo ao voto útil, eu fiz um apelo ao voto no PS. O PS trabalhar em conjunto com BE nem sequer seria novidade. Eu fui secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares durante quatro anos de boa memória para os portugueses, em que conseguimos fazer muitos avanços”, louvou. Apesar do “não” a um acordo pré-eleitoral, concordou que, caso surja depois dos resultados, terá de ser escrito.
Mortágua disse querer para o país uma “solução de estabilidade, para virar a página das políticas da maioria absoluta, da qual temos uma avaliação negativa” e uma aposta em medidas que priorizem a Habitação, Saúde e Salários. A coordenadora do BE reafirmou o acordo escrito como condição necessária para a solução de Governo: “é a única forma, os acordos são escritos e escrutináveis pelas pessoas, é assim que funciona a democracia”.
Esclarecimento da PGR “muito positivo”
Com partida no campo da Atualidade, o frente a frente debruçou-se sobre a resposta da Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, sobre o caso da Madeira, no qual três arguidos estiveram detidos 21 dias e foram libertados sem indícios fortes de atividade criminosa.
Pedro Nuno Santos, preocupado com o tempo de detenção deste caso particular e morosidade da Justiça em geral, frisou a relevância de terem sido prestadas justificações. “Eu acho que foi positivo o esclarecimento, acho muito importante que a PGR perceba que também tem de dar esclarecimentos ao público e ao país. Caíram, num curto prazo de tempo, dois governos”, lembrou.
O secretário-geral do PS defendeu que para um bom funcionamento da Justiça é preciso garantir “a clarificação da relação de poder hierárquico no Ministério Público e autonomia total fase ao Governo”, lembrou. Mortágua afirmou confiar na Justiça, mas assinalou ser “incompreensível que possa haver uma detenção de 21 dias sem uma resposta do Tribunal” e “uma preocupação que, em Portugal, 20% das prisões sejam preventivas e que demore 10 anos entre o início de uma investigação e o início de um julgamento ou até que exista uma acusação”.
À lista de Pedro Nuno Santos para que tudo funcione em pleno, assinou por baixo e acrescentou a necessidade de investir em meios para investigação, condições de trabalho dos profissionais da área e igualdade de acesso dos cidadãos à defesa. “Não pode haver uma justiça para ricos e outra para pobres”, terminou, lembrando o peso que têm elementos como as custas judiciais. Pedro Nuno Santos afirmou que “é sempre tempo de fazer uma reforma” e a Justiça não é exceção e “tal, como disse Mariana Mortágua, vai muito para além do Ministério Público”.
As medidas do BE para a Justiça aparecem listadas no programa eleitoral nas páginas 181-189 (as mencionadas em debate concentram-se nas 182-184) e o PS dedica-lhes as secções das 102-107 e 118-122.
Privatizações e linhas vermelhas
João Adelino Faria, moderador do debate, questionou Mortágua se o BE estaria disposto a abdicar do controlo do Estado sob empresas privadas que considera estratégicas para o país em prol de um acordo com o PS. A coordenadora do BE não respondeu, mas expandiu sobre a medida e explicou as motivações que a sustentam.
O BE quer, para já, que o Estado tenha “uma posição de controlo” sob a REN e os CTT e em relação a outras empresas “estratégicas” após a primeira legislatura, tais como a Galp, EDP e ANA, por considerar uma questão de soberania da economia portuguesa e do país recuperar o controlo dos aeroportos.
“É uma questão de avaliação e balanço. As privatizações em Portugal foram um desastre. Não há soberania estratégica sem a capacidade do Estado para poder ter empresas que são centrais para as suas infraestruturas e que permitam criar polos tecnológicos”, advogou. Mortágua defendeu a prioridade da REN por ser “quem gere a rede elétrica do país (…) não faz sentido que pertença ao estado chinês”, disse e avançou que uma posição de controlo do Estado na REN custaria 50 milhões. O BE detalha sobre estas medidas nas páginas 111-124 do programa eleitoral.
Pedro Nuno Santos disse que o BE “não define linhas vermelhas” e que os próprios socialistas estão “sempre abertos a discutir política e económica” pois “não se parte para um acordo cheio de linhas vermelhas”. No entanto, deixou claro que “reverter” as privatizações não é uma prioridade para o PS, nem algo que esteja no horizonte da legislatura. “Fui sempre muito crítico sobre a forma como foram feitas as privatizações, mas o que vai lá atrás, lá vai. Agora, temos outras prioridades. Não podemos estar sempre a fazer e a refazer”, reforçou.
PPP, setor social e reter médicos
Pedro Nuno Santos não tem dogma sobre a participação dos privados na Saúde, como disse recentemente e como lembrou o moderador. Já Mortágua respondeu que esta posição acaba por “drenar” recursos ao SNS. “A estratégia da maioria absoluta do PS para o SNS falhou, escolheu não recrutar novos profissionais e não tem condições para os manter no público. Por isso, tem um SNS dependente de utilização de horas extra ilegais e de tarefeiros; com mais de um milhão de pessoas desde 2019 sem médico de família e urgências a fechar de forma rotativa”, criticou.
Como soluções, o BE propõe um regime de exclusividade ao SNS “aceite pelos profissionais” e a valorização das carreiras e salários “para prestar serviço de qualidade a todos”. O moderador insistiu sobre se os privados ficariam fora da equação. “Queremos aumentar a resposta do SNS. Se o SNS consegue ter mais resposta e se isso dispensa o que é neste momento contratualizado com privados e se isso é benéfico para as pessoas, então é benéfico para o SNS”, respondeu.
Pedro Nuno Santos assumiu a “preocupação comum em defender o SNS e investir no SNS” e recordou que “duas propostas que o BE fez para aprovar o Orçamento de Estado ’22 foram cumpridas pelo PS – contratação de dedicação plena e respetivos incentivos e a criação da carreira de técnico auxiliar de saúde”. O regime de dedicação plena inclui a passagem das 35 horas de trabalho para as 40. Além disso, os médicos têm de fazer no máximo 250 horas extraordinárias anuais e ganham, por mês, mais 25% sobre a sua remuneração base.
Todavia, Pedro Nuno Santos admitiu que “no SNS há muito trabalho para fazer” e apontou como medidas urgentes: o reforço dos cuidados de saúde primária através da generalização das Unidades de Saúde Familiar (USF) tipo B, em que a remuneração está associada ao desempenho dos profissionais; dotar os Centros de Saúde de meios complementares de diagnóstico e mais autonomia aos Hospitais com a criação dos centros de responsabilidade integrada para reduzir as listas de espera.
O secretário-geral do PS destacou ainda a importância de “olhar para o envelhecimento de forma diferente” em defesa de uma articulação entre o Setor Social e o hospitalar, num sistema de maior agilidade na deslocação de profissionais de Saúde ao domicílio e a lares de idosos e a possibilidade de serem estes trabalhadores a prescrever exames e medicamentos “para que idosos não tenham de ir aos hospitais e às urgências”. Sobre as PPP, Pedro Nuno Santos considera que não serão desnecessárias “se dermos aos hospitais públicos a autonomia que foi dada às PPP”.
Mortágua retorquiu que nenhuma das medidas listadas pelo adversário se faz sem profissionais e voltou a atacar a falta de capacidade do PS em retê-los no público, lembrando um concurso de dezembro de 2023 para 900 médicos de família para o qual concorreram apenas 143 pessoas. “Porque o SNS é incapaz de reter profissionais. Quando Pedro Nuno Santos fala em exclusividade, que não tem nada a ver com a proposta do BE, nunca diz o que isso quer dizer. Os médicos não ficam porque é-lhes exigido que trabalhem horas extraordinárias para além do regime legal”, atacou, referindo-se aos quase dois mil médicos que aderiram à de dedicação plena – 6% dos profissionais no primeiro mês da medida, segundo a crítica do BE e a defesa de Pedro Nuno Santos.
O PS lista as medidas para a área da Saúde na páginas 60-66 do programa eleitoral e o BE dedica-lhe as páginas 3, 37 e 22-40.
CGD como aliada contra a crise habitacional
Para a Habitação, o BE propõe colocar um teto máximo ao preço das rendas, limitar as licenças para Alojamento Local, proibir a venda de casas a não-residentes e servir-se da posição da Caixa Geral de Depósitos (CGD) no mercado do crédito à habitação para baixar os juros. Sobre esta última, o moderador questionou se o Estado teria poder para tal pedido. Mortágua respondeu: “O Estado é o único acionista da CGD e pode ter uma política para determinar a política de mercado da CGD que não só não põe em causa a estabilidade financeira ou os seus lucros, como tem um impacto imediato no acesso ao crédito das pessoas e um efeito de arrastamento no mercado” – ver páginas 15-16 do programa do BE para ler sobre a medida.
Pedro Nuno Santos discordou. “Esta medida não é possível. Um acionista, público ou privado, não pode dar orientações sobre modelo de risco dos bancos. Pode definir estratégia, mas não pode dizer ‘baixe o spread’.”’, explicou. O secretário-geral do PS disse ainda que medida é “regressiva” porque “os mil milhões de euros que a Mariana recorda de lucros da CGD são de todos os portugueses e são dividendos distribuídos ao Estado que este pode até aplicar na construção de habitação”.
O secretário-geral do PS afirmou concordar com o diagnóstico do BE mas defendeu “posições mais equilibradas”, dando como exemplos: “continuar a investir a sério” no parque público de habitação com a ajuda dos privados a quem atribuirá IVA a 6% para construção destinada a arrendamento acessível ou a custos controlados, alargamento do Porta 65 retirando o teto às rendas, aumento da dedução em sede IRS com despesas de habitação de 600€ para 800€, atualização das rendas através da evolução salarial e garantia pública para jovens casais que queiram comprar casa. As medidas são detalhadas nas páginas 69-71 do programa do PS.
Mariana Mortágua argumentou que a situação excecional na Habitação, “a maior crise em Portugal”, requer medidas que baixem os preços já. “Não devemos aceitar que a CGD como instrumento central do Estado não possa ter um papel para melhorar o acesso ao crédito e baixar-lhe os custos. Aliás, é por isso que vale a pena ter um banco público, não é para fazer uma política igual à dos privados”, defendeu, garantindo a legalidade das medidas apresentadas.
“Queria curvar-me perante Alexei Navalny”
A fechar o debate, esteve o investimento do país em Defesa, num contexto internacional particularmente tenso. Pedro Nuno Santos lembrou que “temos um compromisso com a NATO que devemos cumprir”, referindo-se aos 2% do PIB acordados para a defesa, que o secretário-geral do PS quer igualmente que tenham um impacto positivo na indústria nacional.
Mariana Mortágua destacou a importância de “garantir a transparência no orçamento da Defesa” para o qual defende um auditoria e concordou com o PS quanto ao investimento na indústria portuguesa. A líder do BE defendeu que a Europa reforce a autonomia face a “interesses alheios” e possa ter uma posição firme no campo internacional como bloco.
Pedro Nuno Santos não deixou o tema sem adereçar a morte Alexei Navalny, ativista russo e principal opositor político de Vladimir Putin. “Queria curvar-me perante Alexei Navalny pela coragem que teve em defender a Liberdade e as suas convicções”, disse.
O debate terminou com uma garantia de Mortágua: “Não vai haver uma maioria absoluta. A única hipótese de uma solução estável é um entendimento à esquerda que tem de ser para virar a página da maioria absoluta, precisamente nos temas que aqui falámos”, findou.
O JA acompanhará todos os confrontos entre os partidos que têm, simultaneamente, maior representação parlamentar e peso local: AD – Aliança Democrática (PSD/CDS-PP/PPM), PS – Partido Socialista, Chega, BE – Bloco de Esquerda e CDU – Coligação Democrática Unitária (PCP/PEV). Os balanços, com verificação de factos e síntese de ideias discutidas, serão publicados na manhã seguinte ao debate.