Entre acusações mútuas de terroristas nas listas partidárias, hipocrisia e extremismo, houve ainda tempo para falar de Habitação, corrupção, imigração, defesa dos direitos LGBT e da avó de Mortágua, num debate aceso e de linguagem crispada entre o presidente do Chega e a coordenadora do BE.
Mariana Mortágua, líder do Bloco de Esquerda (BE), e André Ventura, presidente do Chega, sentaram-se frente a frente para um debate aceso, na noite de ontem, dia 13, às 22h, na RTP3. A Habitação abriu o debate, com o moderador, o jornalista João Adelino Faria, a questionar Mariana Mortágua sobre os efeitos reais da medida do BE de proibir a compra de casa em Portugal a não residentes. A oferta aumentaria assim tanto e os portugueses conseguiriam pagar essas casas? A líder do BE diz que sim.
“É preciso ter medidas que limitem as rendas e a procura de luxo que não é para viver, é para passar alguns meses do ano, e que está a pressionar os preços para todos. É isso que diz o Banco de Portugal. Nós sabemos que essa procura vem porque houve um incentivo de 1500€ milhões a residentes não habituais e por causa dos vistos gold, que são uma fonte de especulação imobiliária e uma porta aberta à corrupção”, disse Mariana Mortágua.
A coordenadora do Bloco não perdeu a oportunidade para atacar o apoio do Chega aos vistos gold, algo que considerou “surpreendente” vindo de um partido que se diz anticorrupção e antissistema. Ventura defendeu-se afirmando que os vistos gold têm um peso de 3% no mercado imobiliário e nenhum impacto no acesso à habitação. “O BE parte de um modelo em que o Estado é o dono e senhor de tudo. É um modelo que falhou em todos os países desenvolvidos do mundo”, criticou.
Ventura acusou a ideia de proibir a venda de casas a residentes não habituais de ser “pseudo-comunista ou venezuelano-comunista: se há benefícios para uns, está a destruir o mercado todo”. O presidente do Chega atacou o BE por falar em ‘posse administrativa’ de edifícios devolutos para o Estado e acusou o partido de não ter medidas para incentivar a construção ou benefícios fiscais na Habitação – é falso. Mortágua explicou que o conceito de ‘posse administrativa’ foi introduzido e aprovado no governo PSD liderado por Cavaco Silva, com a lei dos solos de 2014.
Ventura reforçou que os vistos gold têm a capacidade de captar investimento para Portugal que, de outra forma, seria feito noutros países. “A economia perde 4,8€ mil milhões só em turismo residencial se acabarmos com os vistos gold”, detalhou. O Chega atacou igualmente a medida do BE de colocar quotas máximas ao Alojamento Local (AL), defendendo o modelo como forma de reabilitação imobiliária e atacando as propostas como “um disparate comunista”.
Para saber mais sobre as propostas do Chega sobre os vistos gold pode consultar a página 38 do programa eleitoral do partido. O BE refere o tema na página 134 do programa.
Financiamento polémico e listas terroristas
Mortágua acusou Ventura de “defender propostas que vão de encontro aos interesses dos grupos e das pessoas que financiam o Chega”, referindo-se ao setor imobiliário “inclusive interesses que estavam, na altura, ligados a ex-administradores do braço do Grupo Espírito para interesses imobiliários e ex-administradores do negócio de Vale do Lobo”, detalhou. A líder bloquista mencionou ainda o apoio do Chega à administração privada dos CTT quando estava a ser financiado pelos donos da empresa e a omissão de Ventura quando esteve presente na comissão de inquérito à TAP sobre o apoio dos investidores privados da empresa feito ao partido. Ventura defendeu-se dizendo que “a lista é pública”. As acusações de Mortágua não são novidade e foram divulgadas pela investigação do jornalista Miguel Carvalho para a revista Visão – pode ler aqui parte desse trabalho.
Ventura, ao invés da defesa dos investidores do partido, partiu para o ataque. O presidente do Chega, a propósito da especulação imobiliária, lembrou o caso de Ricardo Robles, vereador do BE por Lisboa que adquiriu, em 2014, um edifício de três pisos à Segurança Social, numa zona privilegiada de Alfama, por 347 mil que passaria a valer 5,7 milhões. “Um pingo de vergonha chama-se não trazer assuntos que podem voltar para trás. Sabe o que é que se chama isso? Hipocrisia”, lançou.
O líder do Chega continuou a atacar as listas do Bloco, acusando-as de incluir terroristas, referindo-se, sem falar em nomes, a dois ex-membros das FP-25, organização de extrema-esquerda que operou em Portugal de 1980-1987. “Vocês dão-se bem com essa gente”, disparou. A revista Sábado investigou que antigos membros da organização terrorista integraram listas de partidos e encontrou três no Bloco e um no PS. Mortágua afirmou, no debate, que não tem ninguém nas listas do BE julgado por terrorismo.
A líder bloquista não hesitou em mencionar Diogo Pacheco de Amorim, antigo dirigente político do MDLP, movimento armado de extrema-direita. “Não é o meu partido que tem como número dois um dirigente da principal organização terrorista em Portugal, que fez 600 atentados, matou o padre Max e matou uma jovem”, atacou. Ventura foi interrompendo com “é falso” e “vai-se responsabilizar pelo que está a dizer”. Mortágua retorquiu: “Eu conheço bem os seus truques, mas eles não desviam o debate do essencial”, algo que repetiu várias vezes, ao longo da noite.
As afirmações sobre o MDLP são verdadeiras – pode ler mais sobre o movimento no glossário do jornal Setenta e Quatro criado a propósito de uma investigação sobre a extrema-direita em Portugal. Diogo Pacheco de Amorim tem vindo a negar ligações a atividades militares do MDLP, mas esteve no setor político do movimento, liderado por António Spínola, como pode ler no perfil de Diogo Pacheco de Amorim, feito por Miguel Carvalho, já aqui citado e conhecido por trabalhos de investigação jornalística dedicados ao Chega.
Impostos, corrupção e fiscalizar dinheiro escondido
No campo dos impostos, o Chega propõe uma descida do IRC como forma de atrair investimento, que Mortágua considerou ser uma forma de dar “borlas à banca”, lembrando que a maioria das empresas em Portugal pagam IRC baixo por serem PME. “As suas propostas defendem os milionários, a especulação e os financiadores do seu partido”, voltou a frisar. No programa do Chega pode ler-se que defendem a descida do IRC para 15% ao longo da legislatura (ver página 69) e uma isenção progressiva do imposto para “jovens empresários, jovens agricultores e empreendedores, até aos 35 anos” (pg. 64). O partido apresenta igualmente propostas para taxar a banca e devolver rendimentos às famílias – ver páginas 57 e 58.
Ventura acusou Mortágua de falar sobre corrupção sem a querer combater, por ter votado contra a proposta do Chega para aumentar as penas por crimes de corrupção e fiscalização dos vistos gold. A coordenadora do BE respondeu que o problema da corrupção são as dificuldades na condenação e não as penas, lembrando que em 2021 foram condenadas apenas 25 pessoas por corrupção. “Sem condenar, não há penas. O dinheiro está escondido em offshores, que o doutor Ventura defende, onde os corruptos escondem o dinheiro”, rematou, afirmando que a palavra “offshore” não é mencionada no programa do Chega. Ventura remeteu para o histórico parlamentar do partido contra as offshores.
As medidas do Chega contra a corrupção estão listadas nas páginas 9-10 do programa eleitoral do partido e o BE apresenta-as da página 133 à 138.
Cotas para imigração e “política do ódio”
“Para o Chega, os imigrantes em Portugal só interessam se forem qualificados e tiverem dinheiro?”, questionou o moderador, abrindo a um dos temas-bandeira do partido. Ventura respondeu que quer imigração “controlada e regulada”, mas admite que é preciso “orientá-los para as necessidades do país”, com a exceção de pedidos de asilo. As cotas para a imigração, defendeu, seriam “calculadas com base na média de trabalhadores que as pessoas precisam”. O líder do Chega afirmou que o “BE levou o Governo a extinguir o SEF”, o “maior erro que cometemos nos últimos anos”.
A coordenadora do Bloco chamou aos planos do Chega para a imigração “a política do ódio, que não resolve problema nenhum e é um incentivo à imigração clandestina” que deixa as pessoas “entregues às máfias”, e lembrou o papel da população vinda de fora “na agricultura, pescas, lares, construção…” e na economia: “por cada euro que um imigrante recebe da Segurança Social, paga sete”, detalhou. Mortágua enumerou a aposta na regularização de imigrantes, garantia de serviços públicos e ensino da língua como formas de integração.
Em resposta, o líder do Chega diz que Mariana Mortágua sobre o tema da imigração “é um bocado como a história da sua avó, é uma fantasia”. “É aquela malta da ‘esquerda-fina’ que vive no Príncipe Real e acha que o país está todo muito bem que não há imigrantes a mais e que isso é um problema para quem vive nos subúrbios”, atacou, acusando a líder bloquista de querer acolher sem condições e criar “o país da estação do Oriente”, onde pernoitam dezenas de pessoas sem-abrigo.
Após acusar Ventura de estar mais longe de formar Governo do que o BE por ninguém se querer “sentar ao lado” do Chega, Mortágua respondeu sobre a avó. “Eu não minto. A minha avó tinha 80 anos quando ficou a saber que aos 85 a renda podia saltar. Se acha que isto não mete medo a uma idosa, é porque não quer saber da habitação”, disse.
Chega promete acabar com “ideologia de género”
“A primeira coisa que vamos fazer é fiscalizar o dinheiro que está a ir para associações que não apresentam relatórios, desde a Fundação Mário Soares às fundações de defesa dos direitos LGBT”, adiantou André Ventura, a propósito 400 milhões destinados à promoção da igualdade de género, que Ventura acusou o Governo de “propositadamente misturar com a ideologia de género” para “espalhar conteúdos aberrantes e doutrinar as crianças nas escolas”.
Mortágua lembrou que entre as 564 medidas do programa estão apoios ao abono de família e às vítimas de violência doméstica. A líder bloquista aproveitou a deixa da Educação para acusar o programa do Chega, segundo contas da própria, de querer o despedimento de 67 mil professores, referindo-se ao ponto em que propõe uma “poupança de mil milhões de euros por ano”. Ventura explicou que a medida se destina a “reduzir desperdício”, sem especificar em que áreas.
No final, questionados sobre soluções governativas, Mortágua disse que o eleitorado se lembra da geringonça “como um Governo que cumpriu aquilo que prometeu”, e afirmou que o Bloco quer “determinar a governação” para cumprir os objetivos programáticos que regem o partido. “Queremos um país melhor e queremos um país sem medo. Portugal é um país sem medo, onde as pessoas se respeitam”, frisou, sem responder se seria ministra de um governo PS. Ventura terminou com acusações a Mortágua de hipocrisia por propor medidas que não cumpre ou não a afetariam.
O JA acompanhará todos os confrontos entre os partidos que têm, simultaneamente, maior representação parlamentar e peso local: AD – Aliança Democrática (PSD/CDS-PP/PPM), PS – Partido Socialista, Chega, BE – Bloco de Esquerda e CDU – Coligação Democrática Unitária (PCP/PEV). Os balanços, com verificação de factos e síntese de ideias discutidas, serão publicados na manhã seguinte ao debate.