Eutanásia e política extrema foram os únicos temas de discórdia entre Mortágua e Raimundo. A convergência no trabalho, habitação e necessidade de taxar os lucros da banca dominaram um debate pacato, onde as críticas ficaram quase todas reservadas para o PS.
Mariana Mortágua, coordenadora do Bloco de Esquerda (BE) e Paulo Raimundo, secretário-geral do PCP, em representação da CDU protagonizaram o segundo e último debate da noite de domingo, dia 11 de fevereiro.
Os ecos da geringonça e a posição dos partidos perante as diferentes soluções governativas marcou o arranque do debate. A moderadora, jornalista Rosa de Oliveira Pinto, lembrou o recente apelo de Pedro Nuno Santos ao voto útil e questionou Mariana Mortágua se o via como deslealdade, após o papel colaborativo de PS, BE e PCP no acordo parlamentar 2015-2019.
“Não se trata de uma deslealdade, é simplesmente falso. Pedro Nuno Santos diz que a condição para derrotar a direita é uma maioria do Partido Socialista. Ora, em 2015 quem foi determinante para essa maioria foram os partidos à esquerda do PS”, disse Mortágua. “As maiorias determinam-se na Assembleia da República (AR) e em torno programas concretos e medidas claras”, concluiu.
A coordenadora do BE acusou o PS de deixar o país em “crise social e política” após os anos de governação a solo, advogando ser urgente atuar no “problema das rendas, juros do crédito à habitação, hospitais encerrados à vez, médicos de famílias que não chegam para todos, baixos salários e desigualdade salariais; impedindo que aconteçam situações como o CEO do Pingo Doce ganhar num ano o que um trabalhador demora 221 anos a ganhar”, aproveitou para rematar.
Paulo Raimundo, antes de responder, louvou os 17 anos do “sim” ao referendo para a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) “de extraordinária importância para as mulheres e para o país”, deixando um obrigado especial a Odete Santos, interveniente deputada e dirigente do PCP, falecida no final de 2023. O secretário-geral do PCP fez igualmente menção aos 34 anos da libertação de Nelson Mandela, “sinal de esperança nestes tempos sombrios que vamos enfrentando”, com a lembrança de que, na altura, “foram muitos no nosso país que o acusaram de terrorismo”.
Em resposta a Pedro Nuno Santos, Raimundo segue a linha de Mortágua. “O que vamos decidir no dia 10 de março é a eleição de 230 deputados. É nas maiorias que se decidirem na AR que se decide o futuro do país. Há uma coisa que nós queremos afirmar com muita clareza – voto útil é na CDU, não só é um voto de protesto e de soluções, mas um garanto no combate à direita”, assegurou.
Mortágua foi questionada sobre o acordo pré-eleitoral que o BE propôs ao PS, que Pedro Nuno Santos recusou e reforçou a importância que tal teria para um voto em cenário de plena transparência. “Eu defendo total clareza antes das eleições. As pessoas quando vão votar devem saber o que as espera no dia a seguir”, afirmou, chamando-lhe uma “condição de mobilização ao voto” por permitir falar ao eleitorado com respostas concretas – aproveitando para mencionar medidas do BE contra as condições de trabalho agravadas pelas plataformas tecnológicas e de apoio às 800 mil pessoas que trabalham por turnos (ver páginas 47-51 do programa do BE)
No campo dos acordos parlamentares, Raimundo reforçou que a CDU está disponível para “tudo o que for positivo” e insistiu que a discussão para acordos seja focada no conteúdo das propostas e não na forma da coligação, como disse no debate com Montenegro, sem responder à possibilidade de um acordo escrito.
“Não dizemos que o PS é igual ao PSD, não fazemos isso. O problema não é as diferenças que eles têm – tem muitas e algumas de fundo – mas sim onde eles se assemelham: interesses dos grupos económicos, salários e legislação laboral. Naquilo que determina o caminho da vida, PS e PSD estão unidos. Por isso disse, e volto a dizer, que o PSD nunca falhou à chamada e o PS roubou-lhe as bandeiras”, acrescentou.
PS, adversário da noite
A discussão sobre a Habitação teve como ponto de partida o recém-apresentado programa eleitoral do PS, onde propõe duas novidades: garantia pública aos créditos contraídos por quem tem até 40 anos e uma ajuda para quem deixe de poder pagar as prestações.
“É sempre positivo ajudar quem não consegue pagar um empréstimo. O problema é que eu quero ver propostas para os preços das casas baixem a as pessoas conseguirem pagar o empréstimo. São propostas de emergência, mas não atacam a raiz dos problemas”, criticou Mortágua, exemplificando alternativas com as medidas do BE para a Habitação: teto máximo para as rendas e aproveitar a posição da Caixa Geral de Depósitos no mercado para controlar os juros – ver páginas 14-15 do programa do BE. Para aumentar a oferta, Mortágua sugere um limite às licenças para Alojamento Local e a proibição da venda de casas a não residentes – ver páginas 17-18 do programa.
Raimundo concordou que as propostas do PS não resolvem os “problemas de fundo” e acrescentou que são sempre suportadas pelo esforço de todos mas “deixam de fora, sempre, os fundos imobiliários e a banca”. O secretário-geral do PCP lembrou os lucros da banca de 12€ milhões por dia, 6.5 dos quais em comissões e taxas, fatia de onde sugere que venha “esse esforço” para apoio às medidas propostas para a Habitação – ver páginas 27-28 e 62-63 do programa CDU.
O que os separa?
Antes de avançar para os temas em que BE e PCP divergem, Paulo Raimundo deixou um apelo para debates futuros – que se fale da Cultura. “Uma sociedade sem Cultura é muito mais permeável a esta onda demagógica e populista que está aí. Fica o apelo para que se coloque este tema em agenda, que é uma questão urgente”, lançou. Mariana Mortágua aproveitou para alertar que “estamos ainda muito longe do 1% do OE para a Cultura” e chamou à atenção para a degradação de alguns espaços culturais – “por incrível que pareça, chove dentro do Museu do Traje”, exemplificou.
Em relação às “diferenças de fundo”, como nomeou a moderadora, Mortágua falou na morte medicamente assistida apoiada pelo BE pelo “direito a que as pessoas possam escolher o que consideram uma forma digna de morrer, quando têm uma doença incurável e um sofrimento intolerável ou atroz”.
As questões internacionais foram o outro ponto listado pela coordenadora do BE, detalhando a tomada de posição do PCP relativa “à invasão de Putin à Ucrânia e à natureza do próprio regime”, e “considerações diferentes no campo internacional sobre a natureza dos regimes da China e de Angola”.
Raimundo respondeu que a eutanásia é uma “questão muito complexa”. O secretário-geral reforça que o PCP acompanha “a sensibilidade e as preocupações legítimas das pessoas”, mas que o tema se coloca “nesta sociedade, não é noutro quadro, e isso levanta uma série de questões que podem ter efeitos perversos”.
O programa da CDU não tem qualquer menção à eutanásia, mas Paulo Raimundo garante que o partido continua atento e aberto ao debate. O BE reforça o compromisso de apoio à medida na página 40 do programa.
Ucrânia, Europa e NATO
O secretário-geral do PCP levou o internacional para o debate com um apelo pela paz na Ucrânia e Palestina. “A questão decisiva é como é que as forças da paz vão aguentar perante este apelo permanente à guerra”, lançou Raimundo.
Mortágua defendeu, à luz destes acontecimentos internacionais, que a Europa precisa “de ter uma voz própria em matéria geopolítica e de cooperação entre Estados-membros para a defesa, ao invés de servir projetos que não são os seus”, frisou, em crítica à NATO. A título de exemplo invocou a guerra na Ucrânia, momento em que a Europa “perdeu a sua voz, que era essencial para ter um caminho para a paz como ator central”. A coordenadora do BE finalizou dizendo que a paz na Ucrânia não se tem sem a “autodeterminação do povo ucraniano”.
Raimundo não comentou a questão da autodeterminação e acrescentou que para resolver a guerra devem sentar-se todos os intervenientes – que considera serem não apenas Rússia e Ucrânia, mas igualmente Estados Unidos, União Europeia e NATO. “Devemos obrigar a UE a ter um papel diferente porque as guerras não se apagam com bombas e gasolina, apagam-se com pressão política”, defendeu o secretário-geral do PCP.
Em relação à NATO, de quem ambos os partidos desejam que Portugal saia, o PCP defende que basta “cumprir a Constituição Portuguesa”, numa alusão ao ponto 2 do artigo 7º onde se lê: “Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.”
Mortágua concorda, afirmando que “temos a mesma Constituição”, e alertou para a falta de transparência nos orçamentos na área da Defesa e para a fatia pequena que deles sai para “reforço pessoal e pagamento de salários”. A líder considera “essencial” uma auditoria ao Ministério da Defesa para que se saiba como está a ser gasto o dinheiro e não responde sobre se considera que existe falta de militares em Portugal.
Raimundo termina, partido dos militares, com um apelo geral à “valorização das carreiras, aumento dos salários e respeito” dos trabalhadores, três elementos sem os quais considerou que o país “terá grandes dificuldades” no geral e em manter bons profissionais em Portugal.
Para saber mais sobre a posição dos partidos em relação à NATO, consulte as páginas 88-93 do programa do PCP e 88-93 do BE.
O JA acompanhará todos os confrontos entre os partidos que têm, simultaneamente, maior representação parlamentar e peso local: AD – Aliança Democrática (PSD/CDS-PP/PPM), PS – Partido Socialista, Chega, BE – Bloco de Esquerda e CDU – Coligação Democrática Unitária (PCP/PEV). Os balanços, com verificação de factos e síntese de ideias discutidas, serão publicados na manhã seguinte ao debate.