A estreia da Gala de Sacer em Albergaria deixou no concelho o desejo para mais noites solidárias. A atuação da soprano Constança de Sousa e Melo, acompanhada pelo pianista Tiago Mileu, encantou o público, mesmo os assumidos céticos do canto lírico. Entre glamorosos vestidos, fatos requintados e convidados de honra, foi a vertente altruísta da Gala quem mais brilhou.
Faltavam poucas horas para a antecipada Gala de Sacer, evento solidário organizado pela Ordem de Sacer e PRAVE – que decorreu no passado dia 2 de março – quando Constança de Sousa e Melo e Tiago Mileu, com a tarefa de assegurar o momento cultural da noite, conversaram com o JA sobre a expectativa de atuar pela primeira vez no concelho, no Cineteatro Alba.
“O meu pai cresceu aqui e, apesar do mau tempo, conseguimos ver alguns marcos da nossa família na terra”, partilhava Constança, referindo-se, por exemplo, ao Largo Conselheiro Sousa e Melo, trisavô da soprano, conhecido pelo ativo envolvimento cultural e social no concelho e por ter sido o primeiro albergariense a alcançar, em 1912, o mais alto cargo da Magistratura.
Da última vez que o JA falou com a artista, Constança partilhou que, apesar de já ter pisado vários palcos de referência nacional e internacional, faltava Albergaria. “Sinto-me realizada e com um grande sentimento de alegria por poder testemunhar o património da minha família, sobretudo quando aliado a uma causa social, uma combinação sempre desejável na área artística”, dizia.
Tiago Mileu, que começou como solista e acompanha artistas ao piano desde 2018, estreia-se igualmente no concelho. Constança e Tiago conheceram-se em Belém, em dezembro de 2021, num concerto, e são hoje parceiros em palco e na vida. “Já tinha visto o trabalho da Constança e foi absolutamente evidente a grandeza que ali estava. A voz humana é o instrumento mais celso e sublime, em que todos os outros se inspiram, e a da Constança é a mais bela que já ouvi”, elogiava.
A dupla tem percorrido o país com o propósito de levar música erudita a públicos improváveis. “Queremos que ganhem esse gosto. Temos vindo a atuar para audiências pouco familiarizadas com o género e aqui será ainda mais especial”, sorria Constança.
Dar a quem mais oferece
“O foco desta Gala é realmente o apoio a associações do terceiro setor, que estão a passar um mau bocado na atual conjuntura”, dizia Dalila Ferreira, coordenadora da PRAVE, ao JA, enquanto iam chegando os mais de 200 convidados para o espetáculo, cuja receita de bilheteira reverteu inteiramente para a AHMA – Associação Humanitária Mão Amiga.
Sandra Pinto, presidente da Assembleia Geral da AHMA, afirmou ser com grande gratidão que recebem esta ajuda. “Ficamos muito sensibilizados por ser os primeiros escolhidos para esta Gala. É extremamente positivo dar a conhecer associações concelhias que, de outra forma, não chegariam a tanto público”, frisou.
A AHMA nasceu no concelho há 25 anos, pela mão do falecido José Manuel Torres e Menezes e outros nove companheiros, para apoiar crianças vítimas de negligência, maus-tratos e/ou abandono. Os jovens acolhidos pela instituição marcaram presença simbólica na Gala através dos desenhos que criaram para decorar os cadernos, lápis, canecas e separadores de livros que estiveram disponíveis na banca da IPSS, à entrada do Cineteatro.
As entidades organizadoras, como disseram ao JA, semanas antes da Gala de Sacer, contam que esta seja a primeira de muitas noites solidárias. O evento quer-se plurianual na região e anual no concelho, onde se realizará com data fixa e sempre com a receita de bilheteira a reverter para uma IPSS/Associação local. A cada ano, será beneficiada uma instituição diferente, “até passar por todas, ninguém vai sair prejudicado”, como frisou Alfredo Côrte-Real, nessa mesma conversa.
União faz a força
Cecília Dias e Alexandre Faria, apresentadores da Gala, deram a partida para a “noite animada, cheia de emoções” com a chamada a palco de Pedro Marques, presidente da PRAVE; e Sandra Pinto e Carina Terra, da AHMA. “Queremos agradecer a todos os que, de forma espontânea, ativa e proativa, nos ajudaram das mais diversas formas, a termos logísticos e financeiros. É sinal de que quando damos as mãos as coisas funcionam”, louvou.
Pedro Marques expressou curiosidade em escutar a “beleza e arte de cantar” da Constança e de ouvir o pianista Tiago “dar boa nota das suas notas”, tendo recentemente descoberto o gosto pela música clássica, uma novidade que não sabe bem se veio com a idade, disse, com humor, alertando não ser “melómano de música erudita”.
Em tom mais sério, o presidente da PRAVE lembrou a ação da associação junto dos grupos etários e sociais mais desfavorecidos no concelho. “É um trabalho feito na sombra e assim queremos que continue, para salvaguardar a reserva pedida por quem nos procura. É de realçar o trabalho das nossas colaboradoras, que permite realmente que se viva melhor em Albergaria”, elogiou, com um pedido final de aplauso a José Manuel Torres e Menezes, “a alma da AHMA”.
As representantes da associação agradeceram a “ajuda e apoio da comunidade albergariense e entidades intermunicipais” que sempre contribuíram para “dar continuidade ao sonho do dr. Menezes”, que lembraram com saudade e voz tremida. A dupla despediu-se com a típica frase do fundador da AHMA: “Um bem-haja a todos”.
Ovação de pé
Constança de Sousa e Melo cantou e encantou a audiência, com atuações em italiano, francês, alemão, russo e inglês, recheadas de sofisticação, teatralidade e graça, com evidente cumplicidade e harmonia para com Tiago Mileu. No final, receberam uma unânime ovação de pé, acompanhada de fortes e longos aplausos.
“Todos nós saímos hoje daqui mais ricos após este magnífico espetáculo. Posso até dizer que não sei muito bem o que ouvi, mas gostei”, elogiou Mário Branco, presidente da Assembleia Municipal (AM) de Albergaria. “Como cidadão e enquanto autarca, tenho a dar os parabéns a esta organização. Quanto maior é a solidariedade de um país, mais desenvolvido ele é. Portugal tem um elevado índice de desenvolvimento nesse campo”, acrescentou.
Alfredo Côrte-Real, Grão-Mestre da Ordem de Sacer em Portugal, subiu a palco, juntamente com a esposa Idony Punhele, princesa do Havai e representante da Fundação Hoapili Baker. “É com grande orgulho que a Fundação se associa a esta nobre causa”, disse Idony Punhele. O representante da Ordem de Sacer agradeceu a todos os envolvidos na organização – para além dos já referidos: o Município de Albergaria, as Juntas de Freguesia e todos os patrocinadores – e, sobretudo, ao público e artistas convidados que se associaram ao evento, como a cantora Ágata e o conterrâneo Nel Monteiro.
Em sinal de reconhecimento “pelo acompanhamento e apoio mútuos”, Alfredo Côrte-Real nomeou Constança dama da Ordem de Sacer, “uma grande honra”, nas palavras da própria, como foi ter estado no evento como sócia-honorária do Rotary Club Lisboa-Centro. O Grão-Mestre agradeceu a presença do executivo municipal, nomeadamente António Loureiro, presidente da Câmara Municipal de Albergaria; Delfim Bismarck, vice-presidente e vereador da Cultura, e Mário Branco.
“Obrigado a todos, por nos ajudarem e ajudar”, terminaram, em uníssono, os apresentadores da noite. Estiveram igualmente presentes, entre muitos outros, Souto de Miranda, atual presidente da AM de Aveiro; D. Pedro, Duque de Loulé; convidados vindos de Espanha e militares dos Lanceiros.
A Gala de Sacer terminou em convívio, com sabores locais para degustar, assegurados pelo comércio de proximidade, incluindo iguarias com carne marinhoa, raça autóctone com um dos epicentros na freguesia de Angeja e salvaguardada por entidades como a Confraria da Raça Marinhoa, de quem Alfredo Côrte-Real é mentor.
No momento de cocktail, a dupla de artistas partilhou com o JA como foi a experiência de atuar no concelho. “Sinto-me espetacular, faltam-me palavras para descrever. Não estava à espera de sentir tanta emoção. Foi uma grande honra”, realçou Constança. Tiago Mileu assinou por baixo e reforçou a importância de “colocar a arte ao serviço da comunidade, para que tudo isto não seja apenas um circo de vaidades”.