A titularidade da terra como instigador do abandono florestal e impedimento à rentabilidade e gestão sustentáveis, um problema reforçado pela pequena dimensão dos terrenos, esteve ontem em debate no Cineteatro Alba, numa conferência organizada pela Associação Florestal do Baixo Vouga (AFBV). Ribau Esteves e António Loureiro encerraram a sessão.
“A Titularidade da Terra nas Soluções de Gestão da Floresta” foi o tema do debate organizado pela Associação Florestal do Baixo Vouga (AFBV), na passada quarta-feira, 29 de novembro, no Cineteatro Alba. “Este é um tema muito querido à nossa Associação e, por isso, ousámos trazê-lo aqui, mesmo sabendo que pode não interessar à população em geral”, lançava Luís Sarabando, coordenador da AFBV, no início da conversa.
Os proprietários desconhecidos e a posse ditada por heranças indivisas compõem metade de toda a propriedade florestal de Região de Aveiro, deixando entidades como a AFBV sem interlocutores em grande parte do território. “Ninguém toma decisões”, dizia Luís Sarabando, ao Jornal de Albergaria, em vésperas da conferência.
Pedro Reis, do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV), abriu o palco com um desafio lançado ao ChatGPT. “Quais são os principais problemas da floresta portuguesa?” Resposta: Incêndios, gestão do território e alterações climáticas. “Isto é o que mais corre na conversa, não é necessariamente o que é verdade”.
Na apresentação “A questão da terra na gestão florestal agregada: reflexões sobre o caso do Baixo”, a resposta de Pedro Reis diferiu da Inteligência Artificial. A “fragmentação da propriedade rústica e o minifundiário excessivo” são os principais problemas identificados por Pedro Reis na floresta portuguesa, sentidos de forma mais intensa no Algarve e a Norte do Tejo.
Ter escala e ouvir proprietários
O investigador afirma que para um bom aproveitamento da floresta, a nível de rentabilidade e boa gestão territorial, é “preciso escala para atuar”. Mas, o mais importante, reforça, é “trabalhar com os proprietários”, como dita a escola do professor Fernando Oliveira Baptista, agrónomo nacional de renome e responsável pelo ministério da Agricultura e Pescas em 1975.
Pedro Reis segue com a apresentação de exemplos ilustrativos da necessidade de ouvir quem tem proximidade à terra. O primeiro sobre Alvares, Góis, onde, desde 1975 foram consumidos pelo fogo 20 mil hectares, o equivalente a duas vezes a área da freguesia. Aqui, verificou-se que proprietários de perfil “passivo” tendem a aceitar e apostar em soluções de gestão partilhada. “O que é muito bom porque quem cuida, cuida e quem não o faz, está disposto a delegar”, afirmava.
O segundo caso veio de Aguiar de Sousa, Paredes, “uma zona muito fragmentada e com bastante eucalipto”. Os proprietários foram questionados sobre como preveniam o risco de incêndio. Mitigadores de risco para rentabilização (limpar as matas e lucrar com o produto recolhido), limpeza associada a mão-de-obra familiar e a menção do desafio das zonas com condições biofísicas que complicam os trabalhos foram as pistas dadas pelos proprietários. “A resposta, ao contrário da pergunta, não foi direcionada para prevenir o risco de incêndio, mas sim para reduzir o risco económico. A floresta é uma questão económica”, conclui.
Pedro Reis culminou com a apresentação do trabalho feito, com o apoio da AFBV, na Panasqueira, que visitou em julho de 2022, onde “os proprietários estão extremamente felizes” com o nascimento da primeira Área Florestal Agrupada (AFA) da zona do Baixo Vouga. Os 12 proprietários deixaram para trás os marcos de terra do passado e uniram-se para formar um eucaliptal organizado de 11 hectares. “É um excelente exemplo de como se pode fazer uma floresta nova e sustentável, de facto. É uma inspiração profunda para o que pode ser a pequena e média propriedade em Portugal”, elogia.
Leis antigas, problemas novos
Pedro Bingre do Amaral, do Instituto Politécnico de Coimbra, parte da estatística de que “30% da área florestal em Portugal está afeta a mãos mortas”, um facto que Pedro Reis chamou de “elefante na sala”. O engenheiro esclarece que o valor resulta apenas de dados, que ajudou a recolher, referentes ao período de 2003-2016. “Se acrescentarmos quem faleceu antes de 2003 e depois de 2016, facilmente chegamos aos 60%. Estamos a falar de 2/3 da nossa floresta. Não é o elefante na sala, é um mamute”, alerta.
Pedro Bingre recua ao passado para explicar o presente, numa viagem até ao Antigo Regime (séc. XV-XVIII), quando parte significativa dos terrenos estava inutilizada, em “mãos mortas”, presos à Coroa ou Igreja, mesmo quando começava a crescer uma burguesia com interesse em comprar. O engenheiro vê aqui um paralelo com a atual lei da sucessão das terras, que implica a passagem de forma hereditária – um catalisador evidente, para todos os palestrantes, do abandono dos terrenos.
O desinteresse dos herdeiros soma-se à dificuldade burocrática do Estado em adquirir a terra. “O Estado tem de reconhecer o direito ao sucessor, mesmo que este esteja em parte incerta. O Estado tem de provar que não existem herdeiros diretos ou um sucessor. Só fica com a propriedade em último recurso. Estas provas são difíceis e dispendiosas de dar”, detalhava.
O engenheiro deixa claro que, para si, este enquadramento pertence ao passado. “É um lei que vem de um tempo em que havia fome de terra. As pessoas não abandonavam os terrenos porque precisavam deles”, diz. Pedro Bingre aponta para “medidas urgentíssimas” a aplicar, provenientes do Grupo de Trabalho para a Propriedade Rústica, como “o prazo extintivo para a herança e para as doações de partilhas – não só para que os sucessores se habilitem rapidamente aos terrenos, mas também para que possam resolver a questão das partilhas de forma mais célere”, advoga.
Limites legais
Margarida Costa Andrade, professora na Universidade de Coimbra, apresenta “Os instrumentos jurídico-legais para a reorganização do território”, o resultado do desafio que lhe foi lançado para encontrar repostas na lei portuguesa às problemáticas em cima da mesa.
A professora começa por apresentar um cenário no qual vários proprietários estabelecem um acordo sobre como intervir num terreno, algo que tencionam levar avante mesmo que um deles seja substituído por um sucessor. “Só mudando a lei”, explica, detalhando que o contrato implica apenas as pessoas entre quem foi celebrado, impossibilitando a vinculação de terceiros.
O exercício seguinte recaiu sobre a oponibilidade – a possibilidade de o titular de um direito, o exercer, mesmo através de terceiros. Margarida Andrade aponta o instrumento legal “trust”, que dita que quem recebe a propriedade tem de agir de acordo com os interesses de quem lhe concedeu esse direito, igualmente aplicável a um conjunto de proprietários. Em Portugal, o mais próximo que existe deste mecanismo é a “alineação fiduciária da propriedade”, mas não vincula legalmente o novo proprietário de agir de acordo com interesses de terceiros.
A “compropriedade” foi sugerida para situações de junção de terrenos de modo que ninguém perca a propriedade e o “polémico” usucapião para quando alguém pretende adquirir um terreno de que cuida e trabalha, há muito tempo e de forma continuada. A advogada lembra que “o usucapião tem de ser invocado, não basta que o tempo passe”.
Margarida Andrade relembra a importância do direito à renúncia de propriedade, como forma de combate ao abandono de terras. Nestes casos, a propriedade passa a ser do Estado. “Todos os anos existem novas leis com que os proprietários florestais têm de lidar. A pessoa tem o direito de se libertar”, defende.
“Para quê aldrabar?”
A fechar a sessão, Jorge Cunha, da FlorestWise, apresentou “modelos alternativos de Gestão Agregada da Floresta”, com foco na necessidade, por vezes esquecida, de “envolver a comunidade local” na procura de soluções, não só pelo conhecimento que guardam do território, mas por serem eles os beneficiários e/ou prejudicados pela forma como se gere a floresta – um sentimento sintetizado na frase do professor Oliveira Baptista: “A floresta antes de serem árvores, são pessoas”.
O representante da FlorestWise, empresa sem fins lucrativos que se assume como “aglutinador entre a indústria, a academia e a administração pública”, reforça a importância de agregação de território e descomplicação dos processos de titularidade, pontos que podem encontrar auxílio nos modelos de gestão conjunta já aplicáveis: Zona de Intervenção Florestal (ZIF), Entidades de Gestão Florestal (EGF), Unidades de Gestão Florestal (UGF) e a mais recente Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP).
O encerramento da sessão abriu com a intervenção de Francisco Silva, presidente da AFBV, que louvou os intervenientes pela qualidade das apresentações e fez uma breve reflexão sobre o papel do Estado na gestão florestal, um ator que considera como importante parceiro, mas alerta que “o direito de propriedade não deve servir para engordar o Estado”. Ao mesmo tempo, adverte para o erro de pensar que para o proprietário tudo serve. “Se os terrenos não são favoráveis para o Estado, como é que vão ser favoráveis para o proprietário?”, questiona.
António Loureiro, presidente do Município de Albergaria, parabeniza a organização e cumprimenta José Ribau Esteves, presidente da Câmara Municipal de Aveiro e antigo presidente da CIRA – Comunidade Intermunicipal de Aveiro. “Este foi um homem que sempre defendeu a floresta e os produtos vindos dos produtores”, elogiava António Loureiro, referindo-se a Ribau Esteves como “o meu presidente, sempre”.
O edil avança em reposta a uma questão do público previamente colocada relativa aos receios levantados pelo BUPi – Balcão Único do Prédio, plataforma digital onde os munícipes têm sido chamados a registar os seus terrenos. “O BUPi é polémico, mas é a única forma que temos de organizar a floresta. Em Albergaria existem 33 mil artigos florestais, 80% da população tem como complemento ao rendimento a venda de produtos florestais e mais de 25% da propriedade está abandonada”, detalha.
António Loureiro vê o abandono do terreno como uma das maiores problemáticas da floresta nacional. “Eu gosto de falar dos fogos quando está a chover. A maior parte do que arde em Albergaria são zonas abandonadas. Quem abandona os terrenos tem de ser penalizado. Quem não quer gerir o seu território, pode fazer uma doação a quem queira criar um terreno com maior escala. Temos de tomar medidas contra o abandono”, afirma.
Ribau Esteves começa por agradecer à AFBV “por tudo o que têm feito pela floresta”, em particular no apoio prestado à gestão das Dunas de São Jacinto, em Aveiro. Na mesma linha, deseja que o Estado não seja um obstáculo ao ordenamento florestal. “A pior coisa que fizeram ao território florestal português foi subordinar a gestão da floresta à conservação da natureza”, afirma, referindo-se à extinção da Direção Geral das Florestas, nos anos 2000, que em 2012 se fundiu com o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, passando a designar-se Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).
“Temos de acabar com o martírio dos incêndios e com o granel dos baldios geridos pela sogra e pelo marido da sogra”, afirma o presidente da Câmara de Aveiro, incentivando igualmente ao registo no BUPi, apesar de alguns advogados recomendarem a desfavor da plataforma. “O direito dos proprietários não é perturbado. Não podemos é ficar reféns do direito de alguém que não aparece porque um advogado, estupidamente, deixem-me usar uma palavra forte, quer fugir da lei. Se eu sou dono, tenho de dizer que sou dono. Para quê aldrabar?”, questiona.
O autarca termina com um apelo a que se coloquem de lado “fetiches” ideológicos associados ao eucaliptal e se invista na floresta nacional ao invés de “apostar em exportações com impacto ambiental extremamente elevado, de países que não têm sequer essas preocupações”.










